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horizonte artificial

ideias e achados.

Um antídoto para 2020

Uma caminhada do tamanho de Portugal.

Percorrer o país a pé. Dá para conceber um projeto mais nos antípodas de 2020? Foi o que Nuno Ferreira se propôs a fazer, em 2009, e conta no seu livro, Portugal a pé, que andei a ler nos últimos meses. 

O que leva alguém a percorrer tamanhas distâncias pelo seu próprio pé, quando o pode fazer de automóvel ou bicicleta? O Nuno não perde tempo a explicá-lo. Qualquer que tenha sido o motivo para encetar um projeto exigente (de tempo e pés) destes, supõe-se que o leitor que se interessa por um livro assim entende um dos possíveis apelos: a possibilidade de partir numa grande viagem sem depender de mais nada nem ninguém. Um apelo ao escapismo com o qual um leitor de 2020, porventura, é capaz de se identificar de forma mais pungente.

Logo nos primeiros dias, à saída de Sagres, ficam claros os desafios de uma empreitada destas: as queixas dos pés, o peso da mochila, a atenção permanente ao trânsito automóvel. Como seria de esperar pelo ritmo de uma viagem "lenta", as recompensas são um pouco mais espaçadas no tempo e espaço. O Nuno fez carreira no jornalismo e a sua escrita, pouco contemplativa ou introspetiva, reflete essa vocação. Mesmo a dimensão do esforço físico exigido em algumas etapas só é referida ocasionalmente, e por poucas palavras. É igualmente rara a referência a estados de alma, mesmo quando o caminho lhe oferece a ocasional recompensa, habitualmente sob a forma de uma cascata revigorante (no calor do verão) ou de uma vista deslumbrante. Esse registo jornalístico ajuda a manter o foco do livro naquilo que o Nuno mais valoriza ao longo do trajeto: as pessoas com que se cruza e as histórias que têm para contar, sobretudo quando associadas a tradições que ainda tentam manter vivas. Podia ser de outro modo, com uma viagem-livro? De quanto espaço dispõe realmente alguém para resumir num livro tudo o que se pode ver ao longo de uma viagem desta envergadura?

E como é ver Portugal, de uma ponta à outra do território continental, ao longo das quatro estações, pelos olhos de um caminhante solitário, em 2009? Por um lado, um país ligado por estradas, dependente do automóvel, desabitado e envelhecido no interior, marcado pela chaga dos incêndios e descaraterizado pela construção caótica. Por outro, uma paisagem natural rica em contrastes e beleza, das praias às serranias, pontuada pela hospitalidade, boa comida e pelo empenho em conservar e reavivar tradições quase esquecidas.

Algo que também ressalta da forma como o Nuno é recebido em alguns dos sítios por onde passa é uma certa desconfiança em relação àqueles que vêm de fora, ou se apresentam de formas inesperadas, nos lugares mais tocados pela desertificação. O Nuno procura dar mais importância aos muitos exemplos de simpatia e bom acolhimento que recebeu, mas também dá conta como o seu avistamento em algumas aldeias quase desabitadas gerou sobressalto e, por alguns acasos infelizes, conduziu a encontros bruscos com as autoridades.

Desprovido de companhia e de grandes percalços, são muitas vezes os detalhes aparentemente insignificantes que o Nuno vai captando, à beira do caminho ou na voz daqueles com quem se cruza, que ajudam a manter o interesse na paisagem. É também por isso, e pela sua habitual contenção, que é tão surpreendente chegar, a dado ponto do livro, a uma corajosa revelação pessoal do Nuno, que a longa viagem o obriga a confrontar e faz abandonar a estrada durante alguns meses. Essa interrupção, a par de um acidente no Marão (um episódio com o qual qualquer pessoa que já se perdeu na natureza consegue identificar-se), são os momentos mais dramáticos narrados no livro, que mesmo assim não chegam para lhe dar ares de uma viagem de auto-descoberta. O Nuno parece mais partir de um lugar de curiosidade e disponibilidade do que de ânsia reflexiva, e isso reflete-se nas suas crónicas, mais próximas da reportagem do que da auto-contemplação. 

Precisei de quase dois meses para terminar a leitura porque fazia questão de reservar dez a vinte minutos do meu dia para verificar o progresso do Nuno, como se estivesse a acompanhá-lo em tempo real. Abrir este livro, em qualquer página, é abrir uma espécie de portal para uma localidade algures no país. No contexto do teletrabalho e do confinamento, foi bom ter esse escape à mesmice dos dias ao alcance de um livro. Não há forma mais fácil e barata de viajar.

Tudo isto leva-me a pensar na dimensão do desafio subjacente a esta viagem e na sorte que temos de habitar uma terra que é possível palmilhar de lés a lés num espaço de tempo relativamente curto (dois anos, no caso do Nuno). Ficar a conhecer um país ao ritmo de uma caminhada, mesmo um com o tamanho de Portugal, é um feito físico e psicológico notável, e até quem não sente o chamamento para repetir tal façanha é capaz de se sentir inspirado pela perseverança demonstrada pelo Nuno Ferreira. Difícil também não pensar como é que se encara o ano de 2020 com as lembranças de uma viagem destas.

Onde é que encaixa um projeto destes, de caminhar sozinho ao longo de milhares de quilómetros? Não é por acaso que, por onde passou, o Nuno seja confundido ora com um peregrino, ora com um meliante. A modernidade e a desertificação esvaziaram de sentido a viagem a pé, ao ponto de aparecer quase sempre retratada como ato de fé ou de loucura. Este Portugal a pé (e o excelente Açores a pé que se seguiu) não é um nem outro, mas, como qualquer ideia que apaixona a imaginação, oscila perigosamente entre os dois. 

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