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horizonte artificial

ideias e achados.

A dar à manivela do mundo

Desafiámos a comunidade a assinalar o dia mundial da Poesia (no passado dia 21), partilhando connosco um poema, e nunca li tanta poesia como nas últimas semanas. Parecia mal se ficasse de fora, por isso aqui fica um favorito meu, de Almada Negreiros, que uma amiga partilhou comigo há uns tempos, e que levanta à luz a ambivalência inerente à criatividade e ociosidade.

Se me ponho a trabalhar
e escrevo ou desenho,
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar pra diante o tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado,
até que cansado me julgo satisfeito;
e o efeito da fadiga
é muito igual à ilusão da satisfação!
Em troca, se vou passear por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que não me diz respeito,
sinto-me tão chefe do que é fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos
de uma aflição que não é minha,
dou-me tão perfeitamente conta do que
se passa fora das minhas muralhas
como sou cego ao ler-me ao espelho,
que, sinceramente não sei qual
seja melhor,
se estar sozinho em casa a dar à manivela do mundo,
se ir por aí a ser o rei invisível de tudo o que não é meu.

Auto-poesia

Inventei um sistema de fintar a preguiça de ler poesia: deixá-la no carro, para aquelas alturas em que não resta literalmente mais nada para fazer. Chamei-lhe auto-poesia e é uma das minhas mais imaginativas (e desesperadas) ideias de 2020. O primeiro livro de poemas que usei para testar este sistema, e o primeiro em anos que consigo terminar de ler, foi Jóquei, de Matilde Campilho, publicado em 2014.

Não consigo fazer-lhe um elogio mais completo do que aquele que Pedro Mexia lhe dedicou, mas achei que podia falar dele aqui, sobretudo na sequência do post anterior, sobre o processamento que a escrita faz da vida. O Jóquei é um exemplo muito claro disso, e do que a poesia pode ser. Passei o livro a pensar para os meus botões como gostaria de ter a habilidade para fixar em poemas algumas das coisas que só a mim podem ter acontecido (naquele minuto, naquela rua, com aquelas pessoas, com a minha atenção). Vou fixando algumas delas aqui no blog, pela escrita ou fotografia, porque acho que preciso dessas construções, mas também porque me parecem infinitamente mais fáceis de mexer nelas. Além do grande domínio da língua que exige, a poesia é biografia sem bilhete de identidade (ou, para usar uma expressão minha, é fotografia sem metadata). Implica prescindir de uma série de coisas que estamos formatados a pedir ao texto, a começar pela explicação. O poema é um texto que não sente necessidade de se explicar. E isso vai contra tudo o que fui habituado, no entretenimento e no jornalismo, a esperar do texto.

A analogia não deve ser nova, mas a poesia parece estar para a prosa, como o bonsai está para a jardinagem. No fundo, a poesia também é uma arte da miniaturização, feita de uma atenção extrema às unidades mínimas do sentido (as palavras?). A esse nível "microscópico", a escolha de uma palavra pode fazer toda a diferença. Fascina-me imaginar, por exemplo, que um poeta, desafiado a isso, consiga escrever um poema a partir de um hemograma (sim, acredito que já tenha sido feito).

A propósito de tudo isto, Roland Barthes tem um pensamento, no seu ensaio "O prazer da leitura", que me parece valer muito a pena trazer para aqui:

Valéry dizia: «Não pensamos palavras, só pensamos frases.» Dizia-o porque era escritor. Chama-se escritor, não àquele que exprime o seu pensamento, a sua paixão ou a sua imaginação por frases, mas sim àquele que pensa frases: um Pensa-Frase (isto é: aquele que não é nem um pensador nem um fraseador).

É isso que um escritor faz. Inventa, pensa frases, que são, no fundo, novas formas de ver o mundo. A escrita, seja poética ou não, é uma máquina de reinventar o mundo.

A palavra mais bonita

Estive quase para não ir e sinto que essa frase é uma espécie de bifurcação que separa dois universos paralelos. Num deles passei a noite da passada quinta-feira no sofá e não fui ver o espetáculo "A palavra mais bonita" da Maria Giulia Pinheiro. Neste universo, venci o cansaço e a preguiça e fui recompensado com um dos espetáculos de teatro mais especiais a que assisti nos últimos anos.

O caroço do espetáculo é a história do último ano de vida do pai da artista e de como a doença o privou da fala, dos movimentos e, no fim, de uma despedida. As palavras nunca ditas são substituídas pelas palavras que a criadora vai pedindo ao público: "Qual é a palavra mais bonita que você usou para pedir perdão?" ou "Qual é a palavra mais bonita que associas a democracia?" são alguns exemplos das perguntas que vai colocando.

Num momento, estamos a tentar fazer sentido da tragédia pessoal da artista, no outro somos precipitados numa enxurrada de pensamentos e recordações. Não cheguei a contribuir com uma palavra, mas acredito que todos nós, na plateia, estivéssemos a pensar furiosamente numa resposta a cada pergunta. O resultado eram listas de 4 ou 5 palavras por pergunta, anotadas num acetato projetado contra a parede. Como peixes fechados num pequeno aquário, as palavras pareciam todas querer seguir em direções diferentes, com o tema da pergunta a servir de vidro e a impedi-las de escaparem.

Esta vertente interativa é só uma das facetas do espetáculo, mas é também uma das mais bonitas. Foi fascinante assistir ao vivo a esse exercício de criação coletiva.

No final, a Maria Giulia sentou-se à mesa do projetor e fez aquilo que ela descreveu como costura, mas que também pode ser descrito como magia. Pegou em algumas das palavras oferecidas ao longo da noite pelo público e, projetada na parede, escreveu poemas.

O amor é a palavra mais bonita e a maior força criadora.

Obrigado, Maria Giulia.