Pesquisei pelo seu nome aqui no blog e confirmei a minha suspeita: ainda não o tinha mencionado aqui* uma vez que fosse, mesmo depois de ser eleito Presidente dos EUA em 2016. Isto apesar de ser provavelmente uma das figuras mundiais mais referidas nos blogs (e nos destaques que vou fazendo) e nas minhas conversas com amigos sobre política. Não vivo nos EUA, mas sou convocado, constantemente, pelas notícias e pelos seus produtos culturais (Netflix, Youtube, etc), a posicionar-me nos seus debates existenciais (o racismo enraizado, a dificuldade no acesso a cuidados de saúde, o tratamento dos imigrantes, etc). E a verdade é que estou saturado do espetáculo decadente que Trump monta quase diariamente e da exibição despudorada que faz da sua ignorância, racismo e misoginia.
Não o mencionei antes aqui porque quis manter-me fiel a uma das regras que tento cumprir neste blog: escrever apenas sobre aquilo que me inspira a ser uma pessoa melhor. O Twitter chega-me, como escape, para ir registando e sublinhando os estragos que a sua presidência tem causado à democracia dos EUA e, por extensão, ao movimento democrático em todo o mundo.
A atenção dos média norte-americanos nos últimos quatro anos parece ter sido inteiramente absorvida pela sua má conduta como presidente. Até à sua eleição, o jornalismo político praticado em Washington era visto como uma espécie de corpo de intervenção, sempre vigilante e inquisitivo, o mais bem preparado para farejar o mais pequeno escândalo e levá-lo às últimas consequências. Parecia impossível que Trump, primeiro como candidato e depois como Presidente, sobrevivesse politicamente à intensidade desse escrutínio mediático permanente, considerando que nunca tinha ocupado um cargo público.
O que vimos acontecer desde então é que as limitações dos média podem ser facilmente exploradas contra si. Trump subverteu facilmente a lógica dos média a seu favor sem fazer uso de qualquer especial inteligência (apesar do génio que o próprio não se cansa de propalar) ou outra vantagem comunicacional. Paradoxalmente, a fonte da sua força mediática é a sua grande fraqueza: uma necessidade constante de se ver no centro das atenções. Quanto mais desafia as normas e convenções democráticas, mais tempo os média lhe dedicam, num ciclo do qual ainda ninguém parece ter conseguido escapar nos últimos quatro anos.
Trump não tem realmente interesse em moldar a imagem que a imprensa dá de si (até porque não tem problema em os chamar de "falsos" quando não gosta da cobertura). A sua angústia existencial parece residir na possibilidade da televisão não passar qualquer imagem sua nesse dia, seja boa ou má. Segundo vários relatos, passa grande parte do dia a seguir o que os canais noticiosos dizem sobre si próprio (chega a participar por telefone, várias vezes por dia, em alguns dos seus programas de opinião preferidos). Nas horas vagas do tédio, vira-se para o Twitter, onde procura a gratificação imediata e dupla do insulto. Dupla, porque lhe assegura o conforto de saber que os seus tweets presidenciais valem mais um dia de cobertura mediática.
Fica à vista o seu grande medo: se não for o troll do Twitter e dos média, papel no qual está tão confortável, o que mais poderia fazer ele o dia todo numa casa tão grande como a Casa Branca? Ouvir especialistas? Estudar dossiers? Ponderar decisões complexas e nem sempre favoráveis politicamente? Os seus apoiantes celebram-lhe até os defeitos, pelo que dificilmente alguém acredita que seria capaz disto, a começar, imagino eu, por ele próprio.
A saturação mediática é tal que os sucessivos escândalos de corrupção e interferência judicial tornaram-se o pão nosso de cada dia em Washington. Até a pandemia (que nos EUA já causou mais de 200 mil mortos nos últimos sete meses), Trump conseguiu enquadrar nos termos que são mais favoráveis ao seu ego. A questão da utilização das máscaras ilustra bem isso. O tema levou a opinião pública de todos os países afetados pela pandemia a examinar a sua eficácia e a debater o seu uso, mas estamos em outubro e ainda é motivo de controvérsia nacional nos EUA, muito por conta de Trump, que viu no seu uso uma admissão tácita, e pessoal, de fracasso na contenção do coronavírus. Ele, o homem que não lê livros e passa o dia a ver televisão, conseguiu converter, por força da teimosia e vaidade, um tema de saúde pública numa questão de pura e vácua contrariedade pessoal, em relação à qual não está disposto a fazer a mínima cedência.
É aqui que eu queria chegar, com este pequeno, mas ainda assim longo, resumo do que foram os últimos quatro anos. É esta a raiz da minha aflição com Trump: ser obrigado a ver, quase todos os dias, como o pior entre nós conseguiu dominar e quase atrofiar a discussão pública dos grandes problemas que se colocam à sociedade norte-americana e à opinião pública mundial, do racismo institucional ao aquecimento global. Digo quase, porque os movimentos #MeToo e #BlackLivesMatter mostram que continua a haver quem queira abordar de frente alguns desses problemas.
Todos nós já nos cruzámos, em algum ponto e esfera das nossas vidas, com alguém que não parecia estar à altura do cargo ou da função que exercia, seja por não querer ou não saber como merecer o respeito e a confiança daqueles à sua volta. Aos meus olhos, Trump parece-me uma espécie de caricatura levada ao extremo dessa pessoa e dos seus piores defeitos: da insegurança que cultiva o excesso de amor próprio à preguiça intelectual e moral que se esconde na arrogância e indiferença pelos outros.
Estamos a treze dias da América decidir se quer mais quatro anos disto. Acredito que existe uma maioria de norte-americanos que já decidiu que não quer (aliás, tal como nas eleições de 2016, em que Trump perdeu o voto popular). Ainda tenho bem presente na memória a desilusão coletiva que muitos sentimos na manhã daquele 4 de novembro. É por isso que não me permito muito mais do um sóbrio sentimento de esperança: pode ser que esta seja a primeira e última vez que sinta necessidade de falar aqui de Trump.
*Tanto evitei escrever sobre o sujeito que só hoje me apercebi de que o seu nome não consta da lista de palavras reconhecidas pelo corretor ortográfico do Blogs, que o assinala como um erro.