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horizonte artificial

ideias e achados.

Fotografias com vida própria

Beneficio há muitos anos da generosidade de quem partilha as suas fotografias na internet sob uma licença Creative Commons, que permite a outros que façam uma utilização livre e criativa desses trabalhos. A minha principal fonte para imagens de licença livre (ainda que sob algumas condições, como a atribuição do autor, por exemplo) é o Flickr. É lá que encontro, normalmente, as fotografias mais originais e atmosféricas dos temas ou lugares a que preciso de associar uma fotografia. Por atmosféricas, refiro-me a registos de um local ou tema que imagino uma pessoa atenta a fazer em circunstâncias mundanas, por oposição às fotografias que foram feitas para passarem por representações ideais (ou dito de outro modo, postais de verão) dos mesmos sítios do costume. O Flickr (ainda) é um ótimo sítio para admirar a beleza do mundo a qualquer hora do dia sem precisar de viajar. Quando criei a minha conta lá, prometi a mim mesmo que disponibilizaria a maioria das minhas fotografias sob a mesma licença que abrange tantas das fotografias que já me "salvaram" o dia no trabalho ou num projeto pessoal.

Ocorreu-me recentemente fazer uma pesquisa no Google pelo meu nome de utilizador no Flickr, para ver se alguém já teria usado as minhas fotografias da mesma maneira, e os meus olhos abriram-se de espanto pelas coisitas que fui encontrando. A maioria dos resultados diz respeito a páginas na Wikipédia (que depende, naturalmente, de fotografias sem restrições de uso para ilustrar os seus artigos). Tenho fotografias minhas por lá a aparecerem um pouco por todo o lado, da página dedicada ao Cais das Colunas (a minha é fácil de encontrar, pois é a única, aparentemente, tirada ao pôr-do-sol) a uma fotografia do meu sapato para ilustrar, entre outros artigos estapafúrdios, o jardim da Gulbenkian.

O resultado que mais me aqueceu o coração, porém, surgiu no Youtube, e diz respeito ao vídeo de um artista português conhecido por Delectatio que produz música ambiental e usou uma fotografia minha da ponte 25 de abril para ilustrar uma das suas composições. A música intitula-se With you e admito que a pus a tocar a medo, com receio de não gostar e assim não ter muito para mostrar pela forma como as minhas fotografias ganham vida própria. Acontece que gostei e alegrou-me ver algo capturado por mim a ajudar a apresentar ao mundo a criação de outra pessoa.

Como comecei por dizer, há anos que faço uma utilização similar das fotografias dos outros. Não devia ser surpresa encontrar as minhas a serem usadas da mesma maneira, mas continua a ser surpreendente e maravilhoso confirmar que algumas das minhas imagens encontraram um uso novo e, em alguns casos, bonito. E vão continuar a encontrar, quem sabe por quanto tempo mais. Este é o melhor argumento que posso oferecer a fotógrafos amadores como eu que, infelizmente, continuam a embotar as suas imagens com marcas d'água e, ao restringir o seu uso, a condená-las, para todos os efeitos, ao escuro da gaveta.

Uma fotografia de 2022

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A escolha provavelmente tem de ser esta fotografia, tirada em março, de uma águia-d'asa-redonda a sobrevoar Monsanto contra um céu acastanhado pela poeira levantada do Saara. Passei os olhos pela fotografia várias vezes ao longo do ano e reconheci-a sempre imediatamente.

Como é habitual com estas aves, não se trata de uma fotografia muito pensada: já estava a chegar ao fim da minha caminhada quando me apercebi da sua presença lá no cimo. As árvores pareciam inicialmente estar a mais, mas acabaram por fazer toda a diferença. Aqueles ramos no centro da imagem lembram-me uma mão a fazer o gesto de "perfeito" com os dedos. Se não soubesse melhor, diria que o enquadramento final foi planeado, mas só pela águia.

Um sinal de paz na pauta da cidade

Ontem, vi uma reportagem sobre o fluxo de refugiados ucranianos a chegar à estação de comboios de Badajoz, ponto a partir do qual algumas dezenas continuam a sua viagem até Portugal num comboio da Linha do Leste da CP. Estive ali em meados de fevereiro, quando Badajoz parecia ser o sítio no mundo mais afastado de uma guerra (bom, e de tudo o resto, dada a pacatez da região). Apesar de se tratar de uma estação moderna (e servida, no lado espanhol, por comboios modernos), pareceu-me mais pequena e menos movimentada que algumas das estações suburbanas de Lisboa. Hoje, a crise humanitária posta em marcha pela guerra (que já deslocou milhões de ucranianos), já está à vista ali, que é praticamente, dada a proximidade da fronteira portuguesa, um aqui.

Os sinais da guerra estão por todo o lado, portanto, mas os da paz também. O mais impressionante deles, até agora, surpreendeu-me o olhar há poucos dias, e também envolve a ferrovia. Na realidade, é muito difícil não dar por ele: trata-se de um enorme símbolo da paz, pintado em azul escuro a toda a largura do caminho-de-ferro da Linha de Sintra.

Desconheço quem pintou o símbolo clandestino, mas quem quer que tenha sido, conhece bem a zona onde o fez (escolheu pintá-lo onde é possível vê-lo de cima, a partir de uma ponte pedonal que atravessa as linhas ferroviárias) e não pensou pequeno. A dimensão do grafíti é tal que, muito provavelmente, vai ser possível avistá-lo do espaço (quando as imagens de satélite do Google Maps forem, eventualmente, atualizadas).

A ousadia e o sentido de oportunidade do símbolo (apareceu ali algures entre 6 e 8 de março), na sua localização e dimensão, impressionaram-me. Não sabíamos, mas precisávamos de um símbolo destes: anónimo, indelével, feito à escala da cidade. Universal no seu significado.

O selo da saudade

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Foi uma semana meio desperdiçada, marcada pela falta de energia, sobretudo física, mas também criativa. Por isso, virei-me para o arquivo, onde encontrei esta fotografia de uma praia em Sagres, que me faz pensar num envelope de pedra, com uma aba feita de céu e mar. Olhar para novembro com os olhos de junho, deste junho, ainda parece um bocadinho irreal. O choque e a ansiedade de março já lá vão, mas a normalidade ainda parece estar longe. Aquela normalidade que nos permitia, por exemplo, desligar de tudo nas férias. Não me consigo lembrar de uma única coisa que estivesse a marcar a atualidade em novembro de 2019. A nível pessoal, só recordo o entusiasmo e a pressa que tinha, ao final de cada dia daquelas férias, para ir assistir ao pôr-do-sol no mar.

Alqueva

Dois praticantes de remo em pé junto à barragem do Alqueva

Foi a primeira saída da cidade em quatro meses e juntou o desconfinamento à descoberta do que pode ser descrito como um verdadeiro horizonte artificial. Não houve muito tempo para planear a viagem ou demorar em cada paragem, por isso soube mais a visita de reconhecimento do que a escapadinha. Estava um pouco ávido de me fazer à estrada e de ver e parar em sítios novos. Voltei interessado em saber mais sobre esta região, e já ando a espreitar alguns livros que ajudem a perceber como era antes da barragem e o que mudou com a sua construção. O impacto na paisagem é óbvio e factualmente impressionante (o maior reservatório artificial de água da Europa Ocidental, segundo a Wikipédia). Falta conhecer o resto.

Os primeiros sinais da Primavera

Por Monsanto

Uma borboleta branca da couve

Estão por todo o lado, a começar pelas asas da borboleta branca da couve (Pieris brassicae), brancas à exceção de uma pinta escura. É uma espécie que começa a ser vista por esta altura do ano.

Uma amendoeira em flor, em Monsanto

Nas amendoeiras, os sinais são botões.

Atualização 02/05/20: não se trata de uma amendoeira. Talvez uma ameixeira?

Uma acácia a florir, em Monsanto

O amarelo vivo, mas indesejável (por ser considerada, nesta zona, uma espécie infestante), de uma acácia.

Alguém a tocar uma flauta transmontana, em Monsanto

Além de sinais, também há notas musicais no ar. O senhor na fotografia aproveitou os últimos dias de sol para ensaiar, longe da cidade (e dos vizinhos), a sua flauta transmontana.

Orquídea silvestre

Por fim, o sinal mais inesperado. Li, há poucas semanas, na página de facebook do Parque Florestal de Monsanto, que já podiam ser vistas algumas orquídeas por lá. Não sabia da ocorrência de orquídeas silvestres nesta zona, mas a ideia de ter mais um desafio fotográfico à espreita foi irresistível. Não foi preciso procurar muito, pois lá estavam elas, muito pequenas e pouco vistosas, à beira de um dos trilhos que costumo percorrer. A espécie que encontrei, a Orphys Lutea, usa uma estratégia carnavalesca para assegurar a sua reprodução: as suas flores parecem-se com abelhas fêmeas para atrair polinizadores.

EVOA

Uma visita ao maior observatório de aves no país

Um abrigo para observação de aves na margem de um dos lagos do EVOA

É quando pensamos que chegámos que a verdadeira viagem começa. Depois de passarmos Vila Franca de Xira e de sairmos da estrada alcatroada, aguarda-nos um caminho espantoso de 12 quilómetros em terra batida (e boas condições) até ao coração da Reserva Natural do Estuário do Tejo (RNET). O impulso irreprimível, para quem sai do confinamento da cidade, é parar e apreciar o espelho de água da lezíria e a vista desimpedida do horizonte em todas as direções.

O objetivo desta incursão pela campina é a visita ao maior observatório de aves do país, o EVOA (sigla para Espaço de Visitação e Observação de Aves), inaugurado em 2012, cujo centro de interpretação, isolado no horizonte, tanto pode parecer um chalé de grandes dimensões como uma nave espacial aterrada no meio da lezíria.

O edifício principal do EVOA visto à distância

A sua localização bem no interior da reserva faz do EVOA uma espécie de posto avançado da civilização. Além de apoiar as atividades relacionadas com o estudo e a conservação da RNET, o EVOA foi concebido para acolher e incentivar, de forma controlada, a curiosidade em relação à abundância e diversidade da avifauna existente na zona.

Uma visita ao EVOA inclui uma pequena exposição sobre a RNET e o acesso aos caminhos que conduzem aos três pequenos lagos artificiais ali perto. A visita guiada leva duas horas e consiste essencialmente de uma sessão de observação de aves com binóculos (emprestados pelo EVOA) a partir dos pequenos abrigos situados nas margens dos lagos.

Um papa-ratos, observado num dos lagos do EVOA

De acordo com o site do EVOA, o Estuário do Tejo é considerado uma das 10 zonas húmidas mais importantes da Europa devido às grandes quantidades de aves aquáticas migradoras que recebe. No dia da nossa visita, conseguimos observar pelo menos uma dezena de espécies de aves diferentes, sozinhas ou em bando: águias, gansos-bravos, pernilongos, abibes, piscos-de-peito-azul, entre outras, que um folheto fornecido no início da visita ajuda a identificar e registar.

Vale a pena destacar o papa-ratos (na fotografia acima), cujo avistamento entusiasmou visivelmente o nosso guia. Segundo ele, trata-se de um exemplar relativamente infrequente por aqueles lados.

Um bando de aves descansa nas águas de um dos lagos situados no EVOA

O site do EVOA permite consultar uma listagem com as 100 espécies mais avistadas naquela área. Um número surpreendente de aves, mais de 120 mil, podem passar por ali à procura de repouso e alimentação durante as épocas de migração.

A oportunidade para observar de perto tantas espécies diferentes, em tal abundância, é algo que não devem deixar escapar. Além do contacto proporcionado com a natureza, no seio de uma reserva natural, a visita revela um lado completamente diferente, relativamente intocado, do estuário do Tejo. Ao fim-de-semana, existem duas visitas guiadas, uma de manhã e outra à tarde, mas só há capacidade para um número reduzido de participantes, pelo que é aconselhável reservar com alguma antecedência.

Um abibe, um pernilongo e um bando de gansos-bravos em voo

Ao nível da fotografia, a minha maior lente (com a distância focal máxima de 200mm) não chegou para superar a distância entre nós e as aves. Mesmo dentro dos abrigos, é preciso guardar silêncio e uma certa distância dos vidros espelhados. O que pode ser visto como um obstáculo, todavia, é precisamente aquilo que permitiu que certas aves, como o papa-ratos mais acima, passassem tão perto dos abrigos, completamente alheias ao grupo de pessoas que as observavam no interior.

É no caminho até ao EVOA que se vai avistando outra espécie de fotógrafos, melhor equipados e mais determinados. Algumas das lentes que usam podem ser descritas como mini-canhões, tal é a sua distância focal (600mm ou mais). Só lentes tão grandes, e muita persistência, conseguem produzir fotografias tão detalhadas e espantosas como aquelas que o Daniel Raposo, aqui mesmo no SAPO Blogs, ou o Rui Pereira, no flickr, vão partilhando com o mundo.

O céu acima de um dos caminhos do EVOA

Uma das últimas fotografias da tarde, dos únicos aviões que se viam, naquele dia, no céu. Mais a sul, no Montijo, está prestes a receber luz verde a construção de um novo aeroporto, cujo impacto também pode vir a ser sentido na RNET.

Duas horas no EVOA foram suficientes para constatar a abundância e diversidade de aves que se sentem atraídas pela beleza e sossego daquela área. É importante apoiar a missão de quem, no EVOA, e não só, tenta manter o frágil equilíbrio de forças entre a cidade a crescer no horizonte e a natureza que procura ali refúgio.