Nunca vou deixar as luzes do carro ligadas
Este fim-de-semana, pela primeira vez, conduzi sozinho ao longo de algumas centenas de quilómetros de auto-estrada. Tenho lido muito sobre a sensação de liberdade de andar de bicicleta (precisamos de um verbo para aquilo que fazemos realmente em cima de uma bicicleta, ali entre o andar, o deslizar e o engrenar), mas confesso o deslumbramento com a velocidade e o progresso de um automóvel numa estrada vazia. O meu não é particularmente veloz nem confortável, mas ainda não me habituei totalmente à ideia de poder entrar e manobrar inteiramente sozinho uma máquina a grande velocidade (no meu caso, entenda-se "grande velocidade" por 110km/h, que raramente ultrapasso). Dou algumas vezes por mim a pensar nos milhões de horas de trabalho necessárias para desenvolver, fabricar e aperfeiçoar os sistemas que me rodeiam e reduzem a complexidade da operação da máquina a alguns gestos e procedimentos.
Sei que a história do automóvel está muito ligada ao desenvolvimento do capitalismo, do individualismo, do urbanismo, entre outros -ismos, e que muito pode, e deve, continuar a ser dito em relação à nossa dependência do automóvel. Posto isto, é igualmente inegável que conduzir um automóvel em direção ao horizonte está entre uma daquelas experiências que provavelmente surripiámos aos deuses. Tenho amigos que falam disso como fazer terapia. Muito embora eu não esteja nesse nível (para começar, a terapia sairia mais barata, dado o preço dos combustíveis), sou levado, muito a contra-gosto, a concordar.
O meu elogio do automóvel é, acima de tudo, o elogio da distância que este permite atravessar sem grande envolvimento físico. Mas também é um elogio do refinamento da máquina, seja na redução da sua perigosidade, seja no aumento do seu conforto. Um exemplo disso é um dos meus detalhes preferidos do automóvel que conduzo: o alerta sonoro que dispara quando abro a porta ainda com os faróis acessos. Vê-se cada vez menos nas nossas ruas (até porque a tecnologia mais recente já desliga as luzes automaticamente), mas sempre que avisto uma viatura estacionada com os faróis ainda acessos, comprazo-me pela atenção que alguém teve na introdução desta (aparentemente) simples funcionalidade no modelo do meu carro. Gosto dessa sensação, quase luxuosa, cada vez mais rara, de ter menos uma preocupação na vida.