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horizonte artificial

ideias e achados.

O furor da tristeza

O delírio criativo de La vita nuova, o mais recente teledisco de Christine and the Queens

Imagem retirada do videoclip La vita nuova

"O olho é o mais autónomo dos nossos órgãos. É-o porque os objetos da sua atenção se situam inevitavelmente no exterior. (...) Porque a beleza é onde o olho descansa."

A citação é de Joseph Brodsky, do seu pequeno livro "Marca de Água" (uma declaração de amor a Veneza), que acabei de ler há dias e forneceu uma espécie de ponto de partida para falar aqui do feérico e surpreendente La Vita Nuova de Christine and the Queens, no qual os meus olhos não se fartam de descansar.

Desconfio que há dois tipos de telediscos: os que metemos a passar no Youtube como música de fundo enquanto trabalhamos e os outros — aqueles que, por mais vezes que os tenhamos visto, não conseguimos resistir ver novamente, de fio a pavio. O Vita Nuova é um desses rebuçados audiovisuais. Com 13 minutos de duração, é um vídeo um pouco maior que a média; tem cinco capítulos, um por cada canção do novo EP da Christine, lançado em Fevereiro.

Gosto de tudo no vídeo, a começar pelo trabalho de câmara. Não me surpreendeu saber que o realizador, Colin Solal Cardo, foi um dos responsáveis pelo estilo cinematográfico do projeto La Blogothèque. Aqueles tracking shots, com a câmara em perseguição de Christine pelo telhado e interior da Ópera Garnier, em Paris, lembram algumas das incursões musicais da Blogothèque pelas ruas e marcos da capital francesa. Nunca visitei a Ópera Garnier, mas a sua grandiosidade fica bem à mostra neste teledisco, uma espécie de visita dançada aos seus meandros.

It's true that, people, I've been sad (People, I've been sad)
It's true that, people, I've been gone (People, I've been gone)
It's true that, people, I've been missing out (I've been missing out)

Começa com o amanhecer no horizonte de Paris e um anúncio, desarmante e enternecedor na sua simplicidade: É verdade, malta, que tenho andado triste. É impossível saber a qual das sombras da tristeza (depressão, desgosto, solidão, etc) se refere, mas é como a canção diz: you know the feeling.

Pourrais-tu m’aimer ?
Ça j’en doute
Quand tu ne prends que ce que tu veux de moi
Que tu n’aimes que ce que tu veux de moi
Quand tu ne veux qu’une partie de moi

Falar da música de Christine and the Queens implica reparar na coreografia, aqui a cargo de Ryan Heffington. Um operador de câmara nos seus vídeos tem provavelmente de ensaiar tanto a coreografia quanto um bailarino. É algo que salta mais à vista durante o tema Je disparais dans tes bras, no qual vemos a câmara infiltrar-se num ensaio de dança, para se movimentar livremente no meio dos dançarinos e manter impune aos espelhos a toda a volta — um ato de desaparecimento em si mesmo digno de nota.

There's mountains
Mountains and mountains
And mountains and mountains and mountains
Mountains
Since we met

O operador de câmara não é o único a ser puxado para a dança. O teledisco abunda em imagens-ideias, mas uma das mais notáveis surge ao som de Mountains (we met), que é também uma das minhas canções preferidas. O parceiro de dança aqui é o operador de som (ou bailarino disfarçado de técnico de som). A imagem de Christine a perseguir o microfone como quem procura o ouvido da pessoa amada, ou simplesmente de alguém com quem partilhar a sua melancolia, é assombrosamente comovente. De resto, a ideia de cantar sobre um desgosto de amor em termos geológicos é de uma inspiração fulgurante (e, falando da minha experiência pessoal, emocionalmente rigorosa).

Coming to dust, nothing's here protected

Parte da razão para a Vita Nuova soar tão lúbrica ao ouvido é o seu multilinguismo e a facilidade com que Christine desliza entre o francês, inglês, italiano e castelhano. Não sei ao certo o que é (pode só ser a minha francofilia), mas há algo de sedutor no inglês (das quatro, a única língua que domino) modulado por um falante francês.

Voglio che tu mi tocchi con la tua rabbia
Voglio che tu mi tocchi con il tuo furore
Questa è la rinuncia della tua vergogna
Voglio fare l'amore con questa canzone

Sou fã de Christine desde, bem, Christine, outra demonstração sua do que a conjugação perspicaz da música, coreografia e videografia pode gerar. A estes elementos criativos, Vita Nuova junta mais um, o furore. É a palavra certa para descrever a paixão necessária para inspirar e produzir um delírio audiovisual destes, sublime na melancolia e febril na paixão.

PS: Já depois de escrever este post, encontrei uma curta entrevista a Héloïse Letissier com o título perfeito para falar de La vita nuova: Como curar um corpo triste? Dançando.

A palavra mais bonita

Estive quase para não ir e sinto que essa frase é uma espécie de bifurcação que separa dois universos paralelos. Num deles passei a noite da passada quinta-feira no sofá e não fui ver o espetáculo "A palavra mais bonita" da Maria Giulia Pinheiro. Neste universo, venci o cansaço e a preguiça e fui recompensado com um dos espetáculos de teatro mais especiais a que assisti nos últimos anos.

O caroço do espetáculo é a história do último ano de vida do pai da artista e de como a doença o privou da fala, dos movimentos e, no fim, de uma despedida. As palavras nunca ditas são substituídas pelas palavras que a criadora vai pedindo ao público: "Qual é a palavra mais bonita que você usou para pedir perdão?" ou "Qual é a palavra mais bonita que associas a democracia?" são alguns exemplos das perguntas que vai colocando.

Num momento, estamos a tentar fazer sentido da tragédia pessoal da artista, no outro somos precipitados numa enxurrada de pensamentos e recordações. Não cheguei a contribuir com uma palavra, mas acredito que todos nós, na plateia, estivéssemos a pensar furiosamente numa resposta a cada pergunta. O resultado eram listas de 4 ou 5 palavras por pergunta, anotadas num acetato projetado contra a parede. Como peixes fechados num pequeno aquário, as palavras pareciam todas querer seguir em direções diferentes, com o tema da pergunta a servir de vidro e a impedi-las de escaparem.

Esta vertente interativa é só uma das facetas do espetáculo, mas é também uma das mais bonitas. Foi fascinante assistir ao vivo a esse exercício de criação coletiva.

No final, a Maria Giulia sentou-se à mesa do projetor e fez aquilo que ela descreveu como costura, mas que também pode ser descrito como magia. Pegou em algumas das palavras oferecidas ao longo da noite pelo público e, projetada na parede, escreveu poemas.

O amor é a palavra mais bonita e a maior força criadora.

Obrigado, Maria Giulia.