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horizonte artificial

ideias e achados.

O dia de um escrutinador

Mesa de voto

Lembro-me de ver, há uns anos, a notícia de que o antigo presidente Jorge Sampaio havia sido agente eleitoral numa mesa de voto em Lisboa e de ter ficado impressionado com o exemplo. Eis um homem que foi eleito diretamente pelos portugueses para o cargo mais alto da nação sentado a uma mesa a verificar bilhetes de identidade. Isso diz muito da humildade democrática de Jorge Sampaio, mas também do nosso sistema democrático, em que alguém pode ocupar duas posições tão diferentes e dependentes uma da outra. Não esqueci esse exemplo de cidadania, que foi o que me inspirou (isso e a leitura recente do livro de Italo Calvino cujo título tomei de empréstimo neste post) finalmente a fazer o mesmo, quando vi o anúncio no facebook da abertura das inscrições para agentes eleitorais na minha junta de freguesia.

Inscrevi-me em agosto, sem esperar ser chamado, e recebi uma carta algumas semanas depois a convocar-me no dia das eleições como membro de uma das mesas de voto da minha área de residência. Na carta, fui nomeado secretário, que tem algumas funções previstas, mas que, pela minha experiência, é considerado um membro suplente da mesa, que auxilia e substitui um dos outros quatro membros da mesa quando precisam de se ausentar (para almoço, descanso ou para irem votar). Há poucas regras e as mais específicas visam sobretudo os membros com mais responsabilidades (o presidente e o vice-presidente da mesa). Pelo que ouvi, é possível que alguém que esteja a participar pela primeira vez numa mesa de voto possa ser nomeado presidente de mesa, mas penso que essa pessoa recebe alguma orientação prévia por parte da junta de freguesia (e se não receber, os outros elementos da mesa podem e devem ajudar).

O meu domingo começou às 7h da manhã, hora indicada na carta para comparecer no local de voto. Depois das apresentações recebemos uma pequena orientação por parte dos membros mais veteranos. Não existe nada de complicado nas operações da mesa e a papelada que temos de preencher delineia praticamente tudo o que é preciso fazer depois da votação terminar e do escrutínio dos votos estar feito.

Dos cinco membros da nossa mesa, só eu e uma das escrutinadoras (as pessoas que verificam o nome do eleitor no caderno eleitoral) estávamos ali pela primeira vez. Ter ali gente simpática que sabia o que era preciso fazer ajuda imenso, mas o principal ingrediente é mesmo a transparência e o necessário acordo de todos. Na nossa mesa não ocorreu nenhum protesto ou incidente, mas o meu conselho, para quem se meter no mesmo, é que encarem todo o processo com sentido de responsabilidade, claro, mas sem excessiva gravidade. Há cinco pessoas presentes, e as contas têm de bater certo em algum ponto, pelo que é muito difícil imaginar alguém a conseguir sabotar o processo. 

A parte mais exigente da minha experiência foram as duas ou três horas que fiquei a substituir uma das escrutinadoras e a consultar os nomes dos eleitores inscritos nos cadernos eleitorais. Os nomes estão ordenados alfabeticamente, pelo que inicialmente parece ser uma tarefa fácil ⁠⁠— até que o ritmo dos votantes começa a aumentar e damos por nós a procurar nomes afastados por dezenas de páginas. Eram 50 páginas com centenas de Carlos e Catarinas. Quando finalmente pensamos que temos um método ótimo para descobrir mais rapidamente cada nome, surge uma Cíntia ou um César para nos despistar novamente.

Felizmente, a pressão está toda na nossa cabeça, e podemos levar o tempo que precisarmos para nos certificarmos que não assinalamos a pessoa errada (se os dois escrutinadores fizerem esse erro, isso pode depois, no pior cenário, impedir um eleitor com o mesmo nome de exercer o seu direito). É algo de que me vou lembrar, da próxima vez que for votar e estranhar a demora na fila.

E, sim, mesmo com toda a atenção do mundo, de duas pessoas com dois cadernos e tabelas numéricas idênticas (para ir riscando o número de eleitores que já votou), auxiliadas por uma terceira (o presidente da mesa, que lê o nome do eleitor e confere o número de identificação), vai haver discrepâncias, que depois é preciso sanar durante o processo de contagem e apuramento de votos. No nosso caso, entre os dois cadernos, surgiu a discrepância de um eleitor, que foi ultrapassada ao final do dia com a contagem dos votos na urna (que é o total que prevalece).

Ao longo de todo o processo, ninguém deu ordens a ninguém, ninguém ralhou com ninguém (mesmo quando, a meio do dia, nos apercebemos, pelas tabelas numéricas, que já existia a tal discrepância de um eleitor entre os dois cadernos). Foi um dos trabalhos em equipa mais descontraídos e igualitários em que participei, marcados por uma grande maturidade cívica e descontração, que me parecem ser ainda mais essenciais ali.

A contagem dos votos começou às 19h e levou uma hora e picos a fazer. Novamente, muita descontração, com cada membro a contar uma pilha de boletins de voto e a distribuí-los por lista, com validação e recontagem pelos restantes membros. A distribuição dos votos por um pequeno número de listas, e a ausência de discrepâncias, facilitou muito essa parte do nosso trabalho.

Para memória futura, aqui fica uma pequena amostra dos resultados da nossa mesa: dos 965 votantes inscritos, votaram 659 (68%). As listas mais votadas, da mais à menos votada: PS, PSD, PCP, BE, PAN, CDS e IL (as restantes listas receberam, cada uma, menos de 10 votos). Houve 14 votos em branco e 8 votos nulos, com destaque caricato para o voto dedicado ao Presidente do SLB…

Por fim, o momento mediático do dia, a minha breve troca de palavras com António Costa, na fila para votar. Já o tinha encontrado nas eleições europeias, pelo que sabia que votava ali, mas só ao chegar à mesa de voto é que descobri que ele seria um dos eleitores inscritos na nossa mesa. Estudei jornalismo, estagiei num jornal, já assisti a algumas conferências de imprensa e, mesmo assim, não me senti preparado para aquela quantidade de câmaras (ligeiramente) apontadas na minha direção — e olhem que eu pensei que ia escapar, por estar naquele momento a orientar as pessoas à entrada da sala, e não sentado à mesa.

O aspeto mais engraçado de tudo aquilo foi ver as reações durante a manhã dos outros eleitores ao aparato mediático instalado em volta da nossa mesa. Houve quem fizesse cara feia, claro, mas também quem estacasse de surpresa a meio da sala, sem saber imediatamente o que pensar daquilo. Os repórteres de imagem começaram a aparecer logo pelas 8h da manhã para marcar o lugar. Ainda deu para trocar impressões e sentir alguma camera envy (o fotojornalista da Getty Images, por exemplo, levava ao pescoço nada mais nada menos do que três enormes câmaras, só para registar o voto de alguém a menos de 2 metros de distância). Foi o momento mais animado do dia e valeu pelas mensagens dos amigos que me reconheceram na televisão e em alguns memes tótós que circularam (pouco, espero) nas redes. A fotografia no topo deste post foi feita à minha frente, já depois de António Costa ter votado. Não consegui encontrar a referência ao fotojornalista que a tirou, mas mostra bem a descontração que marcou o nosso dia ali.

De resto, houve muitos momentos bonitos entre pais e filhos. O mais bonito foi ver um senhor de 99 anos a entrar na sala de aula, acompanhado da filha (ela própria já na terceira idade), para votar. Caminhava com o auxílio de muletas, e com o ar de quem está um bocado longe dali, mas votou. “É teimoso”, dizia-nos a filha, enquanto esperávamos que o senhor votasse na cabine. E não pelo motivo óbvio: ele tinha preferido deixar os óculos em casa.

Vale a pena ainda assinalar que aquelas 14 horas (das 7h da manhã até ao fim da contagem dos votos da nossa mesa) como agente eleitoral foram remuneradas e que hoje tenho o direito a gozar um dia de folga do trabalho.

Não fiz nada de especial para ali estar e a minha experiência diz-me que a nossa democracia continua em boas mãos, precisamente porque também pode estar, por necessidade e/ou mero capricho da curiosidade, nas nossas.

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