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horizonte artificial

ideias e achados.

Desvios

Foi o último livro de biblioteca que trouxe para casa antes do confinamento ser decretado, e parece feito para os dias que correm. Chama-se Lisboa, inclinações, desvios e consiste essencialmente de fragmentos poéticos, escritos e fotografados, inspirados por Lisboa, da autoria de Henrique Dinis da Gama, arquiteto e auto-intitulado amante da cidade.

Dei pela sua capa em destaque há uns anos numa estante da Biblioteca de Belém, e bastou-me folhear algumas páginas para saber que me ia interessar. É uma experiência especial, que invejo a quem faz investigação académica e passa a vida em bibliotecas, esta de encontrar livros sobre os nossos temas preferidos. E ali estava um livro que reúne poesia e fotografia sobre essa musa volúvel e misteriosa que é Lisboa.

Passaram alguns anos desde esse primeiro encontro, até que em dezembro lá o requisitei. Só o abri há uns dias, e ainda bem que o reservei para este tempo de confinamento, porque soube a passeio sem destino pelos telhados da Baixa, pelas escadinhas de Alfama e tantos outros desvios. Lembrou-me o luxo que é passar a perna à rotina e tomar um caminho diferente, na incerteza deliciosa de onde vai desembocar. Um desvio não é só fugir ao caminho mais direto entre A e B. Também pode ser uma forma de passar o tempo e de curto-circuitar o nosso mapa mental da cidade. Já disse que sinto falta de passear por Lisboa?

É uma falta não só dos lugares, mas dos meios. Já estive várias vezes na Baixa da cidade desde março de 2020, mas nunca mais de transportes públicos. O carro tem as suas vantagens, assim como ir à Lua num invólucro metálico com uma reserva de oxigénio para alguns dias. Já fomos à Lua, mas podemos dizer que já passeámos por lá? O carro é uma âncora, que obriga a voltar sempre ao ponto de partida. Todas as distâncias passam a ser medidas em relação ao estacionamento e ao esforço necessário até ao regresso, sem contar que está sempre , a aliciar-nos com a promessa de uma deslocação mais rápida e menos cansativa. Tenho saudades daquelas tardes de sábado sem nada para fazer em que saía de casa sem a mais pequena ideia de onde iria parar. Deixar ao acaso, e ao primeiro autocarro a surgir na paragem, a escolha de uma direção ou zona da cidade para passear sem rumo. O carro nunca me ofereceu essa serendipidade, essa entrega quase total aos caprichos do destino (mesmo que sob o disfarce da oferta de fim-de-semana da Carris).

Isto foi um desvio, certo? Voltando ao livro de Dinis da Gama. Gostei dos seus poemas e do surrealismo que lhes dá corpo. São poemas com geometria à mistura, que abrem vistas novas da cidade.

A segunda metade do livro é dedicada à fotografia e aos detalhes que tornam Lisboa única: os jogos de luz, figuras e texturas do empedrado; a sinuosidade das escadinhas; as ondulações da calçada (levantadas lascivamente pelas raízes das árvores como membros que se movem debaixo de lençóis); os adornos das fachadas e as molduras em pedra das janelas; a árvore, fotografada de cima, que contrasta a exuberância verde da sua folhagem com o quadriculado comprimido do passeio; a pose sedutora de uma árvore, a lembrar um corpo nu de braços no ar; os candeeiros afixados nas esquinas dos prédios que parecem meter a cabeça para fora (sim, precisamos de uma monografia dedicada aos candeeiros lisboetas); a idosa enquadrada pelo postigo da porta, com ar de quem aguarda expectante a passagem do carteiro. Quase todas as fotografias aqui podiam ser o ponto de partida para algo mais.

Ver Lisboa assim fixada nos seus contornos e idiossincrasias é especialmente cativante quando estamos recolhidos em casa na periferia esquecediça da cidade. Dinis da Gama reserva a Lisboa o mesmo olhar apaixonado de um amante pelas pequenas coisas da sua amada. Ela não está toda ali, nunca podia estar, mas os detalhes já são suficientes para descortinar a personalidade e medir o seu poder de sedução. O segredo de beleza de uma cidade só pode ser revelado assim, num poema ou numa fotografia.