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horizonte artificial

ideias e achados.

Colecionar lições de vida

Tive uma infância rodeada por poucos miúdos da minha idade, por isso fui obrigado a inventar as minhas próprias brincadeiras. Uma delas foi "o jornal do prédio", em que dava conta de tudo o que se passava no nosso pequeno canto do bairro de modo.. como dizê-lo?.. criativo (felizmente, ainda não havia Polígrafo nessa época..).

Foi a distribuir o meu jornal (de tiragem extremamente limitada) que fiquei a conhecer melhor a dona Alda e o senhor Rui, um casal afável mas primoroso de aposentados que viviam no último andar do nosso edifício. Não me lembro se tinham filhos já adultos, mas sei que engraçaram comigo e que me deixavam entrar no seu apartamento sempre que me dava para lhes ir bater à porta perguntar como estavam (e se comprariam um exemplar do meu jornal..).

O sr. Rui era um grande filatelista e um dia, provavelmente numa altura em que já estaria doente, tentou interessar-me por essa ocupação, mostrando-me alguns dos seus estimados álbuns de selos. Perante a minha curiosidade (para um miúdo que não podia perceber o valor que um quadradinho de papel pode ter), deve ter-se sentido incentivado a doar-me alguns deles.

Já imaginam o que aconteceu a seguir, certo? Ao fim de alguns dias, esqueci completamente o assunto e, incumbido de cuidar bem de objetos cujo interesse e valor me passavam completamente ao lado, fiz aquilo que qualquer miúdo desejoso de se desfazer de uma responsabilidade faria: atirei-os para o caixote do lixo do prédio, onde o sr. Rui os iria encontrar no mesmo dia, ao abrir a tampa para depositar os seus sacos. Imagino o espanto e a deceção na sua cara e, mesmo sabendo que tinha a desculpa da criancice, não consigo deixar de sentir um misto de vergonha e arrependimento pelo tamanho do meu descaso.

Não é por isso, todavia, que partilho esta história aqui. Se consigo imaginar a sua deceção é porque o mesmo me fez questão de a mostrar. Depois de resgatar os vários álbuns do caixote do lixo, tocou-nos à porta e disse-me, enquanto me tentava esconder por entre as pernas dos meus pais, que estava muito desiludido por encontrar no lixo algo que me tinha confiado. Podia não ter dado importância ao sucedido e atribuído (corretamente) o gesto à minha imaturidade, mas o sr. Rui optou por partilhar a sua deceção e, com isso, ensinar-me algo sobre o que acontece quando magoamos os sentimentos de outros.

Lembrei-me disso esta semana, enquanto pensava numa coisa que me sucedeu há pouco tempo, que não tem metade do valor daqueles álbuns de selos (e que, já agora, não me voltaram a ser confiados). Resumindo, alguém teve uma atitude comigo que me dececionou, pensei sobre o assunto e informei, com muito tato, a pessoa em causa que o seu gesto me tinha espantado e entristecido.

Não sei ainda bem avaliar como o sucedido vai modificar a minha maneira de ser com esta pessoa, mas uma certeza eu tinha: não queria que nada ficasse por adivinhar ou especular. E isso deve-se a algo que aprendi com aqueles álbuns filatélicos. Não funciono sempre assim (como toda a gente, também sou capaz de calar sentimentos e alimentar amuos), mas defendo que é sempre melhor comunicar e expressar o que sentimos, mesmo que isso possa ser difícil para ambas as partes e que, crucialmente, não existam garantias que resolva alguma coisa.

Nesta maneira de ser sinto um tímido eco na escolha do sr. Rui de me mostrar, sem intermediários ou paninhos quentes, o resultado da minha ação. Acabei por não seguir a sua paixão por filatelia, mas estimo a lição que aprendi consigo naquele dia e que me continua a acompanhar até hoje.