A dar à manivela do mundo
Desafiámos a comunidade a assinalar o dia mundial da Poesia (no passado dia 21), partilhando connosco um poema, e nunca li tanta poesia como nas últimas semanas. Parecia mal se ficasse de fora, por isso aqui fica um favorito meu, de Almada Negreiros, que uma amiga partilhou comigo há uns tempos, e que levanta à luz a ambivalência inerente à criatividade e ociosidade.
Se me ponho a trabalhar
e escrevo ou desenho,
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar pra diante o tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado,
até que cansado me julgo satisfeito;
e o efeito da fadiga
é muito igual à ilusão da satisfação!
Em troca, se vou passear por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que não me diz respeito,
sinto-me tão chefe do que é fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos
de uma aflição que não é minha,
dou-me tão perfeitamente conta do que
se passa fora das minhas muralhas
como sou cego ao ler-me ao espelho,
que, sinceramente não sei qual
seja melhor,
se estar sozinho em casa a dar à manivela do mundo,
se ir por aí a ser o rei invisível de tudo o que não é meu.