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horizonte artificial

ideias e achados.

Falar em público

Ontem ao final da tarde fiz algo que já não fazia há bastante tempo: falei em público. Aconteceu num encontro do Clube de Leitura da Cocó na Fralda. Acompanho o blog da Sónia desde que se mudou para o SAPO Blogs e há já algum tempo que sentia curiosidade em relação ao clube. Ontem, finalmente, consegui aparecer e quase derreti com a simpatia com que fui recebido por todas as participantes. Era o único homem no grupo e, aparentemente, o primeiro a aparecer sozinho numa sessão, o que me surpreendeu.

Nunca tinha participado num clube de leitura, mas gostei do formato adotado, no qual cada participante faz uma breve intervenção sobre um livro que tenha lido recentemente. É um formato informal e descontraído que me parecem ser o cunho da própria Sónia como anfitriã e moderadora. Quando chegou a minha vez, não consegui deixar de sentir aquela vertigem que surge com o desafio de falar em público, mesmo tratando-se de um grupo pequeno de pessoas. Acho que atabalhoei um bocadinho as palavras, mas a experiência foi positiva. Se sentem falta, como eu, de mais conversas e encontros à volta de livros, em que se possam trocar impressões e sugestões de leitura, recomendo vivamente que fiquem atentos ao blog da Sónia e apareçam numa futura sessão. Até há bolo...

E o livro que levei comigo? Foi o A Cultura Mundo, de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, dois filósofos interessados em analisar e enquadrar o tempo em que vivemos, as forças que o atravessam e os seus efeitos na vida em sociedade. Gostei de o ler porque faz um excelente retrato da nossa época, sem cair no pessimismo e deixar de apontar algumas possíveis respostas às difíceis questões que ela nos coloca.

Há tanto por fazer

Terminei ontem de ler "Não respire", o livro que Pedro Rolo Duarte escreveu durante e sobre o seu último ano de vida. Como alguém disse na apresentação, é um livro que não queremos que acabe. Quando acaba, fica a tristeza de perder alguém que trabalhava tão bem as palavras e que ajudava a fazer sentido do nosso tempo. Para lá disso, todavia, dei por mim, ontem ao final do dia, a sentir a vontade, algo adormecida nos últimos tempos, de voltar a escrever sobre as minhas coisas, os livros que vou lendo, as pessoas que vou conhecendo e a cidade que vou observando. É por isso que agora aqui estou, a falar do livro do Pedro. Ler as suas memórias e aceder, até certo ponto, à esfera privada da sua vida, onde se cruzam preferências e convivências, despertou-me para essa necessidade de escrever. É isso que o Pedro sempre soube fazer e é também essa a maior impressão que fica deste livro, de uma vida realizada e preenchida por afetos, palavras e paisagens.

Outra coisa que fica clara nestas páginas é o amor e orgulho que o Pedro sente pelo filho. Se não tivesse ido à apresentação do livro, no Museu da Eletricidade, não teria uma ideia da pessoa a quem associar esse deslumbramento paternal. Mas fui e fiquei assombrado pela graça e naturalidade com que o António Maria, com vinte e poucos anos, colocou a plateia ora a rir ora em absoluto silêncio ao falar do pai. Um silêncio feito de admiração pela prova de maturidade à nossa frente, sem dúvida, mas também de algo que só a palavra carisma explica. O posfácio, da sua autoria, é um texto comovente, que reconforta qualquer leitor ali chegado.

O tema da paternidade é aquele que inspira algumas das passagens do livro que mais fiz questão de guardar para mim. Deixo uma delas, extraída de uma das crónicas do Pedro para a Lux Woman, na qual fala da carta que escreveu ao filho, quando este atingiu a maioridade:

"O que lhe disse? Bom, que aos 18 anos o mundo é maior do que sabemos, mas mais pequeno do que desejamos. Felizmente, ele já conseguiu perceber quão grande ele é, e como somos pequenos e insignificantes neste espaço imenso. Como tudo indica que só vivemos uma vez, sugeri-lhe que aproveitasse o melhor do mundo e saboreasse cada dia como se fosse o último. Não é, mas muitas vezes parece. (...) Para ele, a vida começa realmente agora. Escrevi-lhe: «Se olhares com atenção, há tanto por fazer que parece faltar-nos o ar e vida para tudo. Sugere o teu pai: faz pouco, mas faz bem. Um passo de cada vez."

A ponte no horizonte

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 A ponte, vista a partir de Almada. Janeiro, 2018.

 

Terminei de ler há dias "A Ponte Inevitável", de Luís F. Rodrigues, sobre a história da ponte 25 de Abril. É uma leitura, lá está, inevitável para qualquer pessoa que ainda guarde um certo espanto com a escala deste gigante de aço sobre o Tejo.

O livro traça o início da história da ponte ao século XIX, à primeira proposta de uma travessia entre Lisboa e Margem Sul. Vale a pena ficar a conhecer as diferentes ideias que gerações de políticos, engenheiros e projetistas tiveram em relação à localização e configuração que essa travessia podia vir a ter. Estes estudos mostram como, apesar do seu carácter inevitável, esta também foi uma ponte sucessivamente adiada. A sua construção, na década de 60, juntou essa vontade antiga de unir as duas margens à moderna engenharia do século XX, a mais bem preparada até aí para ambicionar realizar mega-construções.

A história da ponte não acaba com a sua inauguração em 1966. O fim do Estado Novo, o crescimento urbano e a sua manutenção ao longo das décadas foram colocando novas necessidades à estrutura, que o autor aborda recorrendo a várias perspetivas, da história ao urbanismo. Não consigo resistir, todavia, a isolar aquela que mais me agradou encontrar neste livro e que mais impressiona no dia-a-dia da ponte: a estética. Um pequeno exemplo:

“Relativamente à luz, existem aspectos que passam mais despercebidos, nomeadamente, que a experiência estética da ponte é diferente conforme a localização do observador: em Lisboa, olha-se para uma estrutura a sul, ou seja, mais intensamente banhada pelo reflexo da luz do que em Almada. A sensação de desfrutar do pôr-do-sol através da ponte é uma experiência exclusiva de quem a vislumbra a partir do nascente.”

 

A partir do Cais das Colunas

A ponte, vista a partir do Cais das Colunas. Dezembro, 2017.

 

Falar sobre a ponte 25 de Abril sem mencionar o seu estatuto icónico no horizonte de Lisboa resultaria inevitavelmente numa abordagem incompleta à sua estrutura e importância. E uma maneira de tratar esse tema passa por abrir o Instagram. É citado um estudo académico que procurou identificar os monumentos e locais da cidade de Lisboa mais vezes referidos na plataforma:

“Se reduzirmos a lista das suas preferências a elementos monumentais singulares, a Ponte 25 de Abril está inevitavelmente incluída no Top 10 das referências mais importantes da área metropolitana de Lisboa (...). As características deste tipo de informação permitem ainda saber, com exactidão, quais os meses do ano e as horas do dia em que a Ponte 25 de Abril foi mais referenciada/fotografada. Assim, a visualização da infra-estrutura portuguesa atinge picos em Março e Agosto - meses típicos de presença turística em Portugal (...). Relativamente às horas do dia em que a travessia é mais escrutinada pelos turistas das redes sociais, o período da tarde destaca-se claramente dos demais. Dado que o pôr-do-sol em Agosto acontece entre as 20:00-20:30 horas, não será de surpreender que os turistas optem por captar imagens prévias a esse momento - pelo que o período das 19:00 é o mais concorrido a nível fotográfico.”

 

Terreiro do Paço

Terreiro do Paço. Janeiro, 2017.

 

Fascina-me esta ideia de poder tentar medir o número de vezes que um objeto, mesmo um tão grande quanto esta ponte, é visto e registado. Subjacente a isso está a premissa de que fotografamos o que valorizamos. E o que tanto nos impressiona na ponte 25 de Abril? É a sua escala? A harmonia estética da sua geometria? É a geografia em que se encontra? É a vigília sobre as águas do Tejo das duas torres gémeas? Ou é a tensão viva das suas linhas? E que formas ou figuras são convocadas pelo seu desenho? Há muitas maneiras de investigar a ponte e de coleccionar respostas a estas perguntas. O livro "A ponte inevitável" é uma delas (e muito boa na forma como o faz). A arte é outra (estou muito curioso para ir ver ouvir a Shadow Soundings, por exemplo). A minha maneira favorita, mesmo assim, e aquela que está ao alcance da maioria de nós, ainda é a fotografia.

 

Cais das Colunas

Setembro, 2017.

Dez livros de 2017

Escrever sobre os livros que leio é um exercício que não devia fazer apenas uma vez por ano. Seja como for, aqui ficam alguns dos livros que me fizeram boa companhia (no metro, na pastelaria e junto ao rio) em 2017.

 

Escrever: memórias de um ofício, Stephen King

King é o escritor que mais li até hoje. O homem tem uma imaginação fértil para criar situações únicas de impasse que depois resolve com uma mistura muito própria de talento, inteligência e humor. Este ano voltei a ler mais dois ou três livros dele, incluindo este “Memórias de um Ofício”, onde conta o seu percurso como escritor e partilha alguns conselhos para escrever bem. Como o próprio admite, nada do que ele revela irá surpreender quem já lê por hábito, mas o importante é a maneira como o faz, com carisma e sem falsas promessas ou réstia de presunção (para quem já vendeu milhões de livros). Uma analogia particularmente bonita que encontra para descrever a magia da escrita é a telepatia, como forma de transmitir pensamentos no tempo e no espaço a outra pessoa. Quando pensava que já não podia ficar mais interessado nesta obra, cheguei ao último capítulo, onde King relata o célebre atropelamento de que foi vítima em 1999, precisamente na época em que escrevia este livro. A escrita, e a vontade de terminar estas páginas, ajudaram-no a enfrentar a longa e dolorosa recuperação que se seguiu.

 

O Casamento, Nelson Rodrigues

Comecei por ler as suas crónicas e fiquei impressionado com o afiado sentido de ironia deste escritor brasileiro. Foi por isso que decidi dar-lhe mais uma oportunidade e procurar um dos seus romances. Bastou ler algumas páginas deste Casamento para ser novamente apanhado desprevenido pelo seu estilo mordaz. Um dos poucos livros deste ano que me fizeram, aqui e ali, rir em voz alta.

 

Uma história da leitura, Alberto Manguel

Um apanhado geral da história da leitura, bem escrito e organizado. É aquele tipo de livro que elogia secretamente qualquer leitor obsessivo, por confirmar a vantagem do seu ponto de vista do mundo.

 

O Capitalismo Estético na Era da Globalização, Gilles Lipovetsky e Jean Serroy

Confesso: escolhi este livro pela capa, que me intrigou pela sobreposição do título com a fotografia de dois requintados bolos que podiam ter saído da vitrina de qualquer pâtisserie. O que é que a pastelaria francesa pode ter a dizer sobre o capitalismo e a globalização? Lipovetsky e Serroy procuram mostrar como a estética, ao serviço do capitalismo, impregnou todas as esferas da atividade humana, com todo o tipo de consequências e possibilidades associadas. Sinto que é uma leitura útil para decifrar e questionar o tempo em que vivemos.

 

O declínio da mentira, Oscar Wilde

Um manifesto artístico que exalta o direito e o dever do artista a inventar, a sair de si e a não ficar preso ao que a sua época valoriza e legitima. É um texto magnífico, muito fácil e rápido de ler, que autoriza a pensar e a criar mais alto.

 

A Flor Amarela, Anabela Mota Ribeiro

A Anabela teve a oportunidade, no âmbito da sua tese de mestrado, de reler e trabalhar um dos seus livros preferidos, o romance “Memórias póstumas de Brás Cubas”. O resultado é um pequeno livro igualmente fascinante, que bebe de várias fontes para pensar e abrir a obra de Machado de Assis a mais leituras. Um trabalho intelectual marcado pela distinta sensibilidade e inteligência da Anabela. É um livro sobre outro livro, o que significa que é uma recomendação que vale por duas.

 

Lolita, Vladimir Nabokov

A grande revelação do ano para mim. Sempre ouvi falar da “Lolita” de Nabokov, mas nada me preparou para a surpresa que tive com este livro. Entrar na mente de um pedófilo e manter o leitor interessado naquele limiar entre a lucidez e a patologia é um feito considerável. Nunca li nada assim e desconfio que não voltarei a ler.

 

Street Photography Now, Sophie Howarth e Stephen Mclaren

O melhor livro que consultei este ano sobre fotografia, com excelentes conselhos, depoimentos e reflexões de fotógrafos de todo o mundo sobre essa vontade de ir para a rua com uma máquina e tirar fotografias a estranhos nos seus afazeres diários. O principal mérito do livro é expandir a nossa ideia do que pode ser street photography, num mundo que apesar de estar cada vez mais ligado e parecido, continua a oferecer vislumbres inesperados de descoberta, beleza e tensão a quem está disposto a observá-lo.

 

O Tumulto das Ondas, Yukio Mishima

Se pudesse colava aqui as primeiras 5 páginas deste romance. Foi uma das minhas primeiras leituras do ano e continuo com a imagem (e é mesmo imagem) bem presente da ilha onde a história acontece. Nitidez é a melhor palavra que me ocorre para descrever o estilo de Mishima.

 

Tudo é fatal, Stephen King

Depois da desilusão da trilogia "Bill Hodges" não contava voltar tão cedo aos contos de Stephen King, mas cruzei-me por acaso com este "Tudo é fatal" e não resisti à citação na contracapa do conto "Sala de autópsias número quatro". Como é que o autor ia resolver uma situação destas, em que o protagonista acorda paralisado e dá por si prestes a ser autopsiado vivo? A premissa é brilhante e o seu desenvolvimento é de deixar qualquer leitor preso à página. O encontro com "O homem do fato preto" é assombroso e astucioso na forma como explora o medo da solidão na natureza. "Tudo o que amamos nos será tirado" é um título brilhante e o mote a uma das histórias mais caricatas do livro. "Tudo é fatal" dá o nome ao livro e fornece o enredo perfeito para uma mini-série televisiva. Por fim, "1408" é fantástico, sobretudo pelo jogo de antecipação do que o protagonista dessa história irá encontrar ao abrir a porta do quarto de hotel com o número 1408.

Ser livre

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Na semana passada, fui assistir à apresentação do livro do rapper Luaty Beirão, um dos 16 ativistas presos em 2015 pelas autoridades angolanas por se terem reunido para discutir um livro ("Da Ditadura à Democracia", de Gene Sharp). Esteve preso quase um ano, durante o qual fez uma greve de fome de 36 dias em protesto contra a sua detenção, e decidiu recorrer da sua amnistia, apesar do risco que existe de ser obrigado a cumprir o tempo que resta da sua pena de prisão de 5 anos por rebelião e associação de malfeitores.

Por tudo isto, esperava ouvir um homem mais abatido e desiludido. Luaty Beirão mostrou o oposto: uma boa disposição marcada por sorrisos e pela gratidão por toda a atenção e ajuda recebida de amigos, conhecidos e desconhecidos. E mostrou que continua empenhado em desafiar e expor as contradições do governo angolano, apesar do custo pessoal que isso pode ter e já teve. Estou curioso para ler o seu livro, chamado "Sou eu mais livre, então" e baseado no diário que escreveu a partir da prisão, mas já fiquei impressionado com o homem e o exemplo (a "pedagogia da coragem", como lhe chamou, na sala, Daniel Oliveira).

Na fotografia, Luaty Beirão e Mónica Almeida, que falou das consequências da prisão do marido na sua família e atividade profissional como fotógrafa.

A Festa do Livro em Belém (e o Presidente Marcelo)

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A curiosidade da Festa do Livro em Belém começa logo na forma como é apresentada na brochura oficial, como "uma iniciativa de Sua Excelência  O Presidente da República". Já muito foi dito e escrito sobre a originalidade do estilo presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa, mas organizar uma feira do livro nos jardins do Palácio de Belém é notável. Passei por lá ontem, no primeiro dia, e gostei desse dois em um que é ficar a conhecer os jardins do Palácio com livros à volta. Se essa descrição for aliciante, quem quiser tem até domingo para passar por lá, com entrada gratuita. Quanto à feira propriamente dita, tem a dimensão que o espaço permite e preços apenas ligeiramente reduzidos.

 

 

Alguns livros que me surpreenderam em 2015

Não são necessariamente os meus favoritos do ano, mas são aqueles que causaram algum tipo de sobressalto. Vão daqui recomendados.

 

Saint Exupery, Marcel Migeo (link)

O primeiro livro que me veio parar às mãos em 2015 e um dos mais bem escritos, apesar de se tratar de uma tradução portuguesa já antiga. Migeo fez um ótimo trabalho a desmistificar o aviador, escritor e filósofo em Saint-Exupéry para nos dar a conhecer o homem, com os seus inevitáveis defeitos, e a sua incrível vida.

 

A Condição Humana, André Malraux (link)

Outro autor francês, uma grande surpresa com a pungência de Malraux. O traço que mais me ficou na memória da sua leitura é o nevoeiro da noite.

 

Go Set a Watchman, Harper Lee (link)

Esperava, como antecipa a Vanita, o resultado de um golpe de marketing, mas uma vez lá chegado, tive de entrar no livro e isolar o ruído. Foi um dos poucos livros de que falei aqui no blog, está lá tudo o que penso dele.

 

Capitães da Areia, Jorge Amado (link)

Foi a minha primeira leitura de Jorge Amado e rendi-me completamente à narrativa das aventuras daquelas crianças. No final, sentia-me uma delas e, claro, não queria que ninguém ali crescesse.

 

Segundo Sexo (1ª parte), Simone de Beauvoir (link)

Um livro que marcou o feminismo e que clarifica uma série de coisas à volta da nossa condição atual de homens e mulheres.

 

Sputnik, Meu Amor, Haruki Murakami (link)

O meu primeiro encontro com Murakami e uma excelente impressão inicial. A sua sensibilidade torna o mais pequeno gesto límpido e luminoso.

 

A Máquina de Fazer Espanhóis, valter hugo mãe (link)

Um retrato da velhice sem falsas contemplações e um bom ponto de partida para descobrir a obra de valter hugo mãe.

 

Flores, Afonso Cruz (link)

Uma das últimas leituras de 2015 e um autêntico ramalhete de belas imagens literárias. A curiosidade em relação a Afonso Cruz começou com a apresentação, na Fnac, de "Barafunda", outro livro seu para crianças e logo aí ficou evidente a sua cultura, filosofia e talento para cativar quem o lê.

 

A Possibilidade de Uma Ilha, Michel Houellebecq (link)

Um livro tão provocador que ainda não sei bem, ao final de um mês, o que pensar dele. A ironia e um certo (alguns diriam considerável) desdém pela humanidade aparecem na leitura como um degrau inesperado no caminho. Vamos tropeçar e retomar o caminho como se nada fosse, mas há um incómodo que perdura.

"Vai e põe uma sentinela": o lado lunar do romance que cativou o mundo

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Nota: li a versão original, Go Set a Watchman, mas neste post uso o título da tradução portuguesa, Vai e põe uma sentinela, editada pela Editorial Presença.

 

Deve o esboço de um livro, há muito esquecido e até certo ponto renegado pela sua autora, ser publicado? Sobretudo quando promete abalar a percepção de outra obra acarinhada por milhões de leitores?

 

“Vai e põe uma sentinela” foi escrito primeiro, mas dois anos de revisões produziram “Por favor, não matem a Cotovia?”, o único livro que marcava, até agora, a carreira literária da autora norte-americana, Harper Lee. Publicado em 1960, “Não matem a Cotovia” tornou-se numa espécie de tesouro literário da América, pela serenidade da sua mensagem de igualdade e justiça aliada a um nostálgico retrato da infância.

 

A polémica à volta de "Vai e põe uma sentinela" envolve questões sobre a forma como o seu manuscrito foi descoberto pelos representantes legais de Harper Lee e como a autora, debilitada pela idade, deu o aval à sua publicação. A tradução portuguesa do livro chega hoje às mãos do público, pelo que só resta responder às questões de caráter literário: é um bom livro por mérito próprio? Ou não passa de um rascunho que devia ter ficado na gaveta? O seu conteúdo trai, de algum modo, a história e os personagens que os leitores já conhecem?

 

Apesar de conter os indícios que dariam origem ao primeiro livro a ser publicado, “Sentinela” é um livro acabado e diferente. Escrito a partir do ponto de vista de Jean Louise, agora com 26 anos e a viver em Nova Iorque, a sua história tem lugar quase 20 anos depois dos eventos descritos em “Não matem a Cotovia” e com o movimento dos direitos civis dos negros como pano de fundo.

 

Ao regressar à sua terra natal, Maycomb, Jean Louise espera reencontrar as pessoas e os locais da sua infância inalterados pelo tempo, mas o presente tem necessidades mais urgentes. A maior prova disso é a revelação de que o seu pai, o advogado Atticus Finch, aceitou participar num conselho de cidadãos oposto ao reconhecimento de direitos políticos à maioria negra da população de Maycomb.

 

No primeiro livro, Atticus é o único defensor público que aceita representar (e consegue ilibar) um jovem negro de uma acusação falsa de violação. Não é fácil conciliar esse exemplo de justiça e retidão com o Atticus racista e calculista que a história agora publicada apresenta. A revelação desencadeia em Jean Loiuse uma rejeição do pai e do seu modelo moral. Para um leitor de “Não matem a Cotovia”, que tenha sido cativado pela sua idealização de Atticus, o desnorte não é menor.

 

A um nível metatextual, o desapontamento sentido pelo leitor dos dois livros em relação à figura de Atticus causa um certo fascínio, na medida em que esse efeito decorre de um contacto anterior com o personagem que não foi planeado ou previsto pela autora. A deceção de Jean com Atticus espelha o sentimento de quem lê o segundo livro e sente que perdeu um exemplo de virtude, ainda que ficcional.

 

“Vai e põe uma Sentinela” é um livro igualmente fascinante pelo vislumbre que oferece do processo criativo na origem de “Não matem a Cotovia”. Os dois livros parecem tocar-se nos momentos em que Jean Louise recua na memória até à sua infância, passada com o irmão Jem. Lee sabe evocar com imaginação e habilidade a magia e a inocência da infância. O novo livro, e os episódios de infância da protagonista que nele constam, dão sentido à opção de Lee, nos anos 50, de voltar atrás e rescrever “Sentinela” a partir do ponto de vista de uma criança.

 

Sem a história agora vinda a público, o primeiro livro nunca teria sido possível. Ao mesmo tempo, é por ter sido escrita primeiro, e contar uma história diferente, lunar e de perda de inocência, que "Sentinela" merece ter sido encontrado e lido.

 

O final de “Vai e põe uma Sentinela” é algo inconclusivo e abre o livro a críticas de um certo conformismo e até condescendência. Em qualquer caso, é uma história que lembra como, apesar da mudança das leis, restam sempre as consciências individuais. Tal como a segregação racial, no seu tempo, ou os direitos LGBT, no nosso, há um intervalo entre as leis e as mentalidades, que leva o seu tempo a ser fechado. A tolerância não pode ser cultivada com intolerância é mais um eco da mensagem de “Não matem a Cotovia".

 

O novo livro não é uma "traição" da história conhecida desde os anos 60. É o recontar da mesma lição, a partir de um perspetiva diferente. Pode dizer-se que “Vai e põe uma sentinela” é a versão mais adulta e exigente de “Não matem a Cotovia”, na qual questões sobre a desigualdade, o progresso e a vida adulta sublinham a responsabilidade intransmissível de cada um formar e seguir a sua própria consciência.

O meu take sobre o fenómeno literário do ano

Mesmo antes de ser publicado, A Rapariga no Comboio, de Paula Hawkins (editado em Portugal pela TopSeller), já tinha batido recordes no Goodreads e, pelo que tenho visto em primeira mão no SAPO, é um dos livros mais comentados nos blogs. A minha curiosidade, portanto, já estava em alerta quando a Vanita publicou a sua opinião sobre o livro e convenceu-me a dar-lhe uma oportunidade. Mais até do que a minha curiosidade, era o meu ceticismo em relação aos chamados fenómenos literários que exigia uma confirmação.


E vou já começar com a admissão: fui apanhado de surpresa pelo fim. Muita boa gente, com certeza mais atenta do que eu, garante ter topado tudo a páginas de distância do fim, mas o elemento de surpresa é algo que não posso retirar a Hawkins, que soube baralhar bem as cartas e semear devidamente as suspeitas.

Significa isto que se trata de um bom thriller? A resposta é sim. Quem é fã do género e está à procura de um sudoku literário, provavelmente não se vai sentir defraudado.

 

Para um livro que está nas mãos e bocas do mundo, não deixa de surpreender as profundidades a que Hawkins lança a sua protagonista. O retrato que faz do sentimento de fracasso e desistência provocados pelo alcoolismo é vívido e convincente. Nota-se o esforço colocado no desenvolvimento psicológico da protagonista, ainda que o livro ameace esgotar-se no tema do alcoolismo, ao ponto deste servir, demasiadas vezes, para encobrir (ou criar?) alguns buracos ao nível da intriga.

No final, o leitor de policiais tem direito a confirmar ou não a sua tese. Outros tipos de leitores, todavia, terão menos por ansiar, ao nível da escrita e dos temas retratados. Se forem como eu, o mais provável é estarem a tentar não sucumbir à pressão de ler o livro que todos estão a ler. Boa sorte com isso!

Da feira do livro de Lisboa

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Chega maio e começo a sentir aquela antecipação em relação à feira do livro: o ambiente comedido de feira, o subir e descer do parque, os livros a desconto, o cheiro a farturas (porque comer uma já não é para mim), os encontros com amigos. A feira do livro é sobretudo isso, uma espécie de primeiro "first date" da cidade com o verão e visto desse prisma é difícil desiludir. Vou lá mais para o passeio, mas até eu achei difícil resistir aos descontos da Relógio D'Água: trouxe de lá Moby Dick, cuja tradução procuro ler há algum tempo, e o primeiro volume da coletânea de Oscar Wilde, que entrou finalmente nas minhas leituras.

Mais coisinhas sobre a feira do livro deste ano:

as fotografias da Paula Ferreira para o Corvo;

- a série Se (tivesse muito dinheiro e) passasse na Feira do Livro de Lisboa hoje da Madalena, com boas recomendações de leitura;

- e, por fim, para quem como eu gosta de ver o que os outros compraram na Feira, a tag feira do livro no SAPO Blogs.