O Tejo visto da janela
Esta tarde, na Casa da Cerca, em Almada.
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ideias e achados.
Esta tarde, na Casa da Cerca, em Almada.
Quem poderia acreditar que sair de casa, e vir passear até aqui, ao final do dia, há apenas alguns meses, seria contra à lei?
Passei no domingo pelo jardim da Gulbenkian e lembrei-me que tinha um post esquecido nos Rascunhos do blog sobre o seu projeto de ampliação para sul, cujas obras, aliás, já estão em curso. Este é um dos meus locais favoritos da cidade e merece um post inteiro sobre as minhas razões para isso. Para já, achei que valia a pena colocar os toques finais num texto que está para ser publicado há mais de um ano.
Uns dias antes do país parar, em março de 2020, ainda fui a tempo de visitar, na Fundação Gulbenkian, uma pequena e curiosa exposição para quem se interessa pela forma como a cidade é transformada pela arquitetura e sente que o espaço ocupado pela Fundação faz parte da sua vivência de Lisboa.
A exposição intitulava-se “12 projetos de arquitetura” e colocava à apreciação do público os projetos que resultaram do concurso de ideias para a ampliação a sul do jardim Gulbenkian, aliada à remodelação do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (CAM). Sou utilizador assíduo deste jardim há muitos anos e nunca me tinha ocorrido pensar porque não ocupava toda a área disponível a sul do quarteirão (a Fundação chama-lhe o “vértice sul”), inclusive demarcada por um antigo muro, até à Rua Marquês de Fronteira. Segundo uma notícia do Expresso, só recentemente é que a Fundação obteve os direitos para esse espaço e assim poder criar uma nova entrada nessa rua, como acontecia com o antigo Parque de Santa Gertrudes. Em breve, quem se aproximar da Gulbenkian vindo de Sul, deixará de ter de contornar o tal muro até uma das entradas laterais para poder aceder ao jardim.
Visitei a exposição movido pela curiosidade de ver as respostas a esta oportunidade única de deixar uma marca num dos espaços verdes mais convidativos de Lisboa.
A área de intervenção, assinalada a laranja, das obras de ampliação para sul do jardim da Fundação Gulbenkian.
Até certo ponto, pode dizer-se que foi o jardim, concebido pelos arquitetos paisagistas António Viana Barreto e Gonçalo Ribeiro Telles, que colocou a Fundação no mapa. É difícil estimar qual seria o poder de atração das ofertas culturais da Gulbenkian sem esse pequeno oásis da natureza em seu redor, ao ponto de se tornar um ex-líbris da cidade e um cartão de visita da própria Fundação. Quem já assistiu a um espetáculo na sua sala de concertos dificilmente esquece a impressão inicial causada pela vista para o lago proporcionada pela fachada envidraçada. Por momentos, não parece mais que estamos em Lisboa, tão diferente e misteriosa (sobretudo à noite, quando está iluminada por alguns focos de luz) é a paisagem, sem sinal da cidade à volta. No fundo, a mesma sensação que qualquer visitante que já tenha passeado pelos caminhos serpenteantes e viçosos do jardim conhece.
Quando a paisagem tem primazia sobre os edifícios, como parece ser o caso na Gulbenkian, como é que se desenvolve uma proposta de intervenção sobre esse espaço? Ver como o mundo da arquitetura respondeu a este desafio despertou a minha curiosidade e também um certo zelo da minha parte, como se, por ser utilizador daquele local, me pudesse considerar parte interessada no processo de seleção da melhor proposta — como se fosse um membro "à solta" do júri, a fazer uma revisão tardia das ideias a concurso, com a enorme vantagem de já conhecer a proposta vencedora e disso influenciar necessariamente as minhas impressões sobre os restantes projetos.
O antigo portão do Parque de Santa Gertrudes, que servirá de futura entrada no jardim da Gulbenkian a partir da rua Marquês de Fronteira.
Percorri com atenção todas as propostas e alguns critérios de exclusão saltaram-me à vista: referir, logo à cabeça, o termo "demolição" na descrição do projeto e a utilização de maquetas praticamente despidas de árvores e de outros elementos naturais. A provar, mais uma vez, que existe uma relação negativa entre qualidade e quantidade, as propostas mais maçudas eram também, geralmente, as mais vagas e menos estruturadas à volta de uma visão ou ideia central.
Mesmo assim, havia algumas ideias curiosas, entre as quais o "hangar" idealizado por Carla Juaçaba para o CAM, cujas enormes portas poderiam abrir, literalmente, o museu para o jardim, e servir, quando fechadas, de tela gigante para projetar cinema ao ar livre. A escala do projeto parecia um pouco desajustada para o local, mas não lhe faltava imaginação.
O vidro era outra possível solução arquitetónica para fazer a ponte entre a paisagem e o edifício do museu e foram várias as propostas que seguiram a via da transparência. A proposta de JunyaIshigami era uma das mais aventuradas, pela forma como rodeava praticamente todo o jardim em corredores envidraçados, numa espécie de abraço (e, porventura, cerco) à natureza.
No sentido oposto, houve quem optasse pelo betão como elemento decisivo. De certo modo, eram as propostas que defendiam uma maior continuidade com a configuração atual da Gulbenkian. Entre essas, as propostas da firma "Menos é mais" e de Pedro Domingos destacavam-se por serem também as mais imediatamente reconhecíveis como possíveis ampliações da Gulbenkian como a conhecemos hoje. A primeira chega mesmo a propor uma ponte pedonal sobre um lago na vertente sul — uma ideia arrojada, que também pode ter parecido excessiva para o espaço, com consequências ao nível da acessibilidade. A proposta de Pedro Domingos apresenta uma enorme janela quadrada na fachada sul do museu e simula alguns enquadramentos interessantes do jardim quando visto a partir do interior, mas a escolha do betão liga estas propostas a uma estética cubista que os espaços verdes da Gulbenkian se encarregaram de ir gradualmente suavizando e apagando.
O projeto vencedor é da autoria do arquiteto japonês Kengo Kuma, e é marcante pela frase singular com que escolhe abrir o caderno da sua proposta: “We are living in the era of the garden, not of the architecture”. E assim, com apenas uma frase na primeira página, está definido o princípio que irá orientar as suas ideias. Depois de folhear cadernos com centenas de páginas (com direito a secções inteiras dedicadas à "metodologia"..), foi inevitável sentir um certo deleite com esta maneira tão sucinta de projetar uma visão.
A proposta de Kuma sobressaiu imediatamente das restantes pela sua claridade, é certo, mas o elemento decisivo é o conceito que encontra para desenvolver essa ideia de primazia do jardim, fixado pelo termo japonês engawa, que designa o espaço abrigado pelo telhado ao redor da habitação tradicional japonesa, no qual “nunca se está totalmente no interior, nem no exterior”. É essa a inspiração para o componente mais vistoso, e perspicaz, do projeto: uma enorme pala curvada instalada na fachada sul do CAM, que esbate a fronteira entre jardim e edifício, e debaixo da qual os visitantes poderão desfrutar ao mesmo tempo da natureza e arquitetura.
Kuma, citado no site da Gulbenkian (com ênfase minha):
"Não repensámos a Gulbenkian através de intervenções independentes na estrutura e no terreno, mas a partir de uma integração holística de todos os elementos da paisagem. Ao criarmos um novo diálogo entre o edifício e o jardim, somos atraídos para o espaço entre a parede traseira do CAM e [a] parede fronteira do Parque. A nossa missão é enaltecer sem destruir a beleza; como tal, vemos neste espaço inexplorado a melhor oportunidade para construir um novo rosto para a Gulbenkian. Concebemos uma nova cobertura, que se transforma num filtro entre o CAM e o jardim e num espaço de socialização para os visitantes."
É uma proposta notável a muitos títulos, a começar por esta economia de meios, sem referência a demolições ou intervenções supérfluas, que poderiam roubar espaço ao jardim ou resultar na desfiguração do CAM. Kuma revela uma compreensão clara dos objetivos essenciais da intervenção: abrir uma nova vertente no jardim Gulbenkian, fazendo-o da forma mais sustentável possível, sem deixar de chamar a atenção para a existência do CAM.
Maqueta da proposta de Kengo Kuma para a ala sul do jardim Gulbenkian.
Será que a visão de Kuma chega para que a ala sul pareça tão convidativa e arredada da cidade quanto o resto do jardim Gulbenkian? E ainda para sublinhar o estatuto do CAM como pólo cultural? Estou otimista que sim, mas não tarda muito para que todos possam formar o seu próprio juízo. A conclusão das obras está prevista para 2022. Contem comigo para lá passar com muita expetativa e curiosidade. Para já, fica o elogio a uma pequena exposição que mostrou as diferentes maneiras de reimaginar um dos locais mais acarinhados da cidade.
Esta tarde, junto ao Tejo.
Lisboa, outubro 2020.
Tatiana-Mosio Bongonga, ontem ao final da tarde, a atravessar a Alameda na corda bamba, perante os milhares de espetadores que vieram assistir ao seu espetáculo, "Linhas voadoras".
Aquele sorriso, que diz quase tudo, é a marca do domínio absoluto que mostrou ao longo da hora que levou a percorrer os 300 metros (aproximados) do meio da Alameda ao topo da fonte luminosa. Foi um dos feitos mais impressionantes, e carregados de tensão, que tive a sorte de poder testemunhar ao vivo. E dou-me, mesmo, muito sortudo por ter apanhado a (demasiado) discreta promoção da Câmara Municipal de Lisboa ao evento.
No final, quando a artista já estava a escassos metros do ponto de chegada, e a curta distância agigantava ainda mais o seu sorriso, momento inesquecível (que justifica chamar de genial à pessoa que idealizou a situação): a fonte luminosa, até aí desligada, ganhou vida e dela pareceu jorrar toda a água e tensão acumuladas durante aquela hora de olhos postos numa mulher de vestido de lantejoulas, sem rede e sem medo, a caminhar no céu de Lisboa.
É de momentos e feitos assim que são feitas as lendas de uma cidade. E Lisboa ontem ganhou mais uma. Bravo, Tatiana!
Este ano, pela primeira vez, interessou-me espreitar com mais atenção os projetos que estão a votos no orçamento participativo (OP) de Lisboa. Os projetos resultam de propostas feitas por cidadãos que entretanto foram validadas e escolhidas pela câmara. Na fase atual, só resta votar nas propostas que devem ser incluídas no orçamento anual da câmara. Cada pessoa pode votar em dois projetos: um projeto transversal à cidade, e portanto com maior orçamento, e outro de âmbito mais local (pelo que percebi, por cada grande zona da cidade é eleito um projeto local).
Biombo de lamelas em tela semirrígida a circundar elevadores à noite
O título é um bocadinho críptico, mas depois de perceber a que elevadores se refere (os ascensores antigos no centro da cidade), faz sentido. Tratam-se de ícones da cidade (mais do que meios de transporte) que são permanentemente alvo de vandalismo e a instalação de proteções é capaz de gerar alguma poupança na sua limpeza e recuperação. É considerado um projeto Estruturante, presumivelmente por abranger vários locais da cidade.
Reformulação da Pista clicável do Jardim do Campo Grande - Norte
Não vivo na zona do Campo Grande, raramente passo por lá à superfície, mas quando o faço é de bicicleta... e passar na ciclovia paralela ao jardim Mário Soares é como atravessar um pequeno caminho de obstáculos. As raízes das árvores à volta foram lentamente abrindo brechas em plena via, resultando num mar de lombas que é necessário contornar com cautela. O resumo do projeto não diz especificamente que é disto que trata a reformulação, mas mesmo que não seja, já tem o meu voto. A ser isto, claro, continua a não estar entre as coisas mais importantes ou críticas para a cidade, mas é um dos projetos locais que me dizem qualquer coisa, por conhecer e passar na zona.
Esta tarde, no Cais das Colunas.
A cidade pareceu ser só deles.
Cais das Colunas, agosto 2018.