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horizonte artificial

ideias e achados.

Linhas da vida

Esta tarde, perdi a carteira na rua. A carteira ou o porta-cartões? A senhora da Carris, no outro lado da linha, tinha razão: nestas situações, é importante ser específico. Esta tarde, perdi o porta-cartões na rua. Só me apercebi quando cheguei a casa e, como é meu hábito, fui esvaziar os bolsos. Como é que definimos a sensação de perder algo tão essencial para o nosso quotidiano? Aqui em casa, falei em aflição, mas por escrito a palavra soa excessiva para a situação. Urgência? Um pouco melhor. É importante sermos específicos, já sabem. Tinha de voltar atrás, refazer os meus passos e esquadrinhar as pedras da calçada. Recuei até ao último ponto do meu trajeto desde o autocarro, mas sem sorte. Começava a fazer mentalmente as pazes com o azar ("são só cartões", "não levava sequer dinheiro", "aquela fotografia do passe nem me favorece"), quando o telefone toca. Era a minha irmã, sem preâmbulos, a indicar-me que a carteira seguia na viatura 2258 (algo assim) e que só tinha de aguardar a sua volta na paragem da direção contrária para a reaver. Por um instante demasiado fugaz, senti-me dentro de um daqueles filmes de Hollywood em que uma voz sabe-tudo irrompe do nada. O pior de vermos muitos filmes de Hollywood é que rapidamente ficamos versados em todos os enredos possíveis. Neste caso, percebi que devo ter tido, algures no tempo, a sensata precaução de deixar uma pequena folhinha com contactos de emergência (um pedaço de papel mais pequeno que um post-it, praticamente a desintegrar-se, esmagado centenas de vezes contra o forro) entre os meus cartões. Esperei pelo autocarro e, como um pequeno milagre da vida urbana, lá estava a minha carteira, avistada por alguém atento e entregue a um motorista zeloso (a folhinha não era mesmo nada fácil de encontrar). O alívio foi incrível (passo muitas vezes pela fila para a Loja do Cidadão), mas o que mais me fascinou foi mesmo a expressão que um amigo usou ao ouvir-me narrar a pequena sorte. Ali estava eu, meio perdido na rua, e subitamente alguém puxou uma das minhas linhas da vida para chegar a mim. Delicio-me sempre com histórias à volta de níveis de separação (de como estamos todos ligados uns aos outros, nem que seja por intermédio de uma média estatística de algumas pessoas) e hoje achei curioso dar por mim no centro de uma. A carteira perdida foi uma espécie de batota, mas vocês percebem. Aliás, porta-cartões.