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horizonte artificial

ideias e achados.

Os tempos do Céu sobre Lisboa

E a oportunidade de reler um dos meus blogs preferidos

Em setembro, pude segurar um blog nas mãos — e um blog só pode ter o peso de um livro. Falo d'O Céu sobre Lisboa, o blog mantido pelo Pedro Ornelas entre 2003 e 2008, e que hoje só pode ser lido em livro.

Nunca cheguei a conhecer o Pedro, nem sequer a interagir consigo como leitor, mas lembro-me de ter descoberto o seu blog, logo em 2003, e de o ler de uma ponta à outra, entre o intrigado e o invejoso. Inveja, em primeiro lugar, com aquele título fabuloso, que já pinta uma aguarela na imaginação, antes do modem sequer ter tido tempo de descarregar o template. E depois, com aquele modo de escrever, direto e descontraído, de quem está dentro da cidade, mas a vê-la de fora, graças à lente da curiosidade.

O Pedro parecia sempre pronto para reparar em algo, fosse um detalhe ou cena inusitada, e em partilhar esse motivo de espanto. Os seus textos revelam alguém movido a curiosidade (divertia-se, a título de exemplo, a apanhar o primeiro comboio que estivesse a passar numa qualquer estação de comboios), com lata jornalística para espreitar tudo e travar conversa com todos. O Céu era o seu caderno de observações e curiosidades colhidas nas ruas de Lisboa, e não só. Como o Ivan Nunes explica no prefácio do livro, não se trata, todavia, do típico flâneur:

O narrador deste livro é um flâneur - mas sem inconsequência, sem diletantismo. (...) O que lhe interessa não é só a novidade, mas sobretudo a mudança, que tanto se pode encontrar em coisas novas como naquelas que guardam os traços de uma vida muito antiga.

Por tudo isto, o Céu foi um dos blogs que mais influenciou, no tom e conteúdo, a minha própria escrita nos blogs. Já em setembro de 2008, quando fiquei a saber da morte do Pedro, o admitia: o Céu era o blog que gostaria de ter feito. É por isso que senti o assalto da nostalgia (embrulhada na expetativa sobre o aspeto que um dos meus blogs preferidos teria como livro) quando soube que o blog do Pedro tinha sido resgatado do apagão eletrónico e editado como livro, por iniciativa e esforço de alguns dos seus amigos. Em setembro, pude finalmente adquirir um exemplar, diretamente das mãos da Helena Soares, a mentora do projeto e sua editora.

Para começar, é um livro muito bonito. Nota-se o esmero na sua apresentação, da belíssima capa à paginação (o design é da Silvadesigners), com os posts do Pedro vertidos para o papel tal e qual como foram publicados, sem dispensar as fotografias. A fotografia servia muitas vezes de ponto de partida para os posts do Céu, ao ponto de me fazer questionar se o Pedro hoje seria mais blogger ou instagramer. A relação entre a palavra e a imagem no Céu era, na iminência dos smartphones (e da facilidade na recolha e partilha da fotografia), curiosa e, em retrospetiva, um bocadinho à frente do seu tempo.

Por falar em tempo, a Lisboa das crónicas do Pedro não dista assim tanto da nossa e, no entanto, as duas já não coincidem exatamente. Perceber isso, identificando as diferenças, também faz parte do gosto de ler este diário lisboeta dos anos zero. Como leitor (repetente, ainda por cima) do Céu, achei especialmente surpreendente a quantidade de vezes que me cruzei com o Pedro nos mesmos locais que visitei recentemente: o Castelo de Almada, as bilobas no Jardim das Amoreiras (estamos, precisamente, na sua "época de ouro", em finais de dezembro), a Tapada da Ajuda (que só explorei este ano), são só alguns exemplos. É o tipo de encontro-desencontro que só um livro, com a sua mobilidade, pode proporcionar entre duas pessoas que, apesar de tudo, partilham a mesma cidade-paixão.

Estas ideias à volta do tempo levam-me, inevitavelmente, a pensar em tudo aquilo que o Pedro teria para ver, investigar e comentar nos últimos anos em Lisboa. O que pensaria da cidade confinada? E da cidade esvaziada pelo Airbnb (fundada, precisamente, em 2008)? E do que mudou para melhor? A Ribeira das Naus, descrita no blog, em 2005, com a sua "estação fluvial fantasma", seria um bom exemplo de algo que o Pedro teria, certamente, gostado de conhecer. Não me recordo da existência da estação, mas lembro-me de passar várias vezes pelo estaleiro de obras que ali esteve durante anos, enquanto a zona aguardava definição. Em 2021, é um dos locais obrigatórios da cidade para recuperar horizonte e desfrutar do rio.

Como ideia, este livro também é o fruto tardio, e belo, da amizade. Em 2017, os escritos do Pedro estavam prestes a desaparecer da blogosfera. Hoje, já não é possível consultar o blog no seu endereço original (motivo pelo qual não faço link aqui). Os seus amigos juntaram-se e prestaram-lhe esta derradeira homenagem, a da memória. Ler o Pedro é poder voltar a seguir-lhe os passos e acompanhar o seu olhar por uma Lisboa que ora parece continuar igual, ora mostrar-se irremediavelmente mudada. Por tudo isto, foi uma das leituras que mais me cativaram este ano. É, seguramente, um dos melhores livros sobre Lisboa publicados nos últimos anos.