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horizonte artificial

ideias e achados.

Teoria das cores

Uma ameixeira-de-jardim em flor

Uma ameixeira-de-jardim em flor, aqui perto de casa, em meados de fevereiro.

As ameixeiras-de-jardim em flor sinalizam mais o clímax do inverno do que a chegada da primavera, e o timing não parece ser acidental. A minha teoria pessoal é de que o rosa das suas flores destaca-se mais com os céus cinzentos de fevereiro do que com os céus mais soalheiros de março. Uma vantagem competitiva em relação a outras espécies, porventura, ou uma árvore simplesmente que gosta de ter todas as atenções só para si.

A janela do envelope

Inspirados no twitter, fizemos uma ligeira alteração, esta semana, à forma como apresentamos, nas nossas listagens públicas (exemplo, a lista de posts com a tag viagens), os excertos dos posts publicados na plataforma. Trocámos a ordem do texto e da eventual fotografia (agora, o excerto começa pelo texto) e limitámos a altura da imagem, centrando-a no espaço que lhe está reservado. É uma alteração insignificante, em páginas relativamente pouco utilizadas, mas tenho dado por mim deslumbrado com a forma como algumas imagens encaixam na perfeição na "janela do envelope". É uma boa analogia, porque parte do meu dia consiste em navegar nestas páginas, e espreitar o que vai sendo publicado — no fundo, espiar correspondência alheia. Já agora, não deixem de ler o post da Ana. Se algum dia visitar Atenas, vou lembrar-me dele.

Auto-poesia

Inventei um sistema de fintar a preguiça de ler poesia: deixá-la no carro, para aquelas alturas em que não resta literalmente mais nada para fazer. Chamei-lhe auto-poesia e é uma das minhas mais imaginativas (e desesperadas) ideias de 2020. O primeiro livro de poemas que usei para testar este sistema, e o primeiro em anos que consigo terminar de ler, foi Jóquei, de Matilde Campilho, publicado em 2014.

Não consigo fazer-lhe um elogio mais completo do que aquele que Pedro Mexia lhe dedicou, mas achei que podia falar dele aqui, sobretudo na sequência do post anterior, sobre o processamento que a escrita faz da vida. O Jóquei é um exemplo muito claro disso, e do que a poesia pode ser. Passei o livro a pensar para os meus botões como gostaria de ter a habilidade para fixar em poemas algumas das coisas que só a mim podem ter acontecido (naquele minuto, naquela rua, com aquelas pessoas, com a minha atenção). Vou fixando algumas delas aqui no blog, pela escrita ou fotografia, porque acho que preciso dessas construções, mas também porque me parecem infinitamente mais fáceis de mexer nelas. Além do grande domínio da língua que exige, a poesia é biografia sem bilhete de identidade (ou, para usar uma expressão minha, é fotografia sem metadata). Implica prescindir de uma série de coisas que estamos formatados a pedir ao texto, a começar pela explicação. O poema é um texto que não sente necessidade de se explicar. E isso vai contra tudo o que fui habituado, no entretenimento e no jornalismo, a esperar do texto.

A analogia não deve ser nova, mas a poesia parece estar para a prosa, como o bonsai está para a jardinagem. No fundo, a poesia também é uma arte da miniaturização, feita de uma atenção extrema às unidades mínimas do sentido (as palavras?). A esse nível "microscópico", a escolha de uma palavra pode fazer toda a diferença. Fascina-me imaginar, por exemplo, que um poeta, desafiado a isso, consiga escrever um poema a partir de um hemograma (sim, acredito que já tenha sido feito).

A propósito de tudo isto, Roland Barthes tem um pensamento, no seu ensaio "O prazer da leitura", que me parece valer muito a pena trazer para aqui:

Valéry dizia: «Não pensamos palavras, só pensamos frases.» Dizia-o porque era escritor. Chama-se escritor, não àquele que exprime o seu pensamento, a sua paixão ou a sua imaginação por frases, mas sim àquele que pensa frases: um Pensa-Frase (isto é: aquele que não é nem um pensador nem um fraseador).

É isso que um escritor faz. Inventa, pensa frases, que são, no fundo, novas formas de ver o mundo. A escrita, seja poética ou não, é uma máquina de reinventar o mundo.

Como criar um blog de sucesso?

Este texto não é realmente sobre aquilo que o título sugere que é

Comecei a escrever este post há uns anos, só que fui-me esquecendo dele nos rascunhos, e quando dei por isso, deixaram de me fazer a pergunta no título. Não quis desperdiçar a chama-piloto, por isso decidi avançar mesmo assim com o post e alinhar alguns pensamentos algo dispersos sobre isto de ler e escrever blogs.

Quem chegou aos blogs nos primeiros anos atrás de uma certa ideia de sucesso, ligada ao lifestyle e à ostentação, descobriu entretanto o Instagram e não olhou duas vezes para trás. Vistos desse ângulo morto, é inegável que os blogs perderam mediatismo e apelo económico. Se é para mostrar, e comercializar aquilo que pode ser mostrado, haverá melhor meio para o fazer do que uma plataforma onde o tempo estimado de consumo e interação é medido em segundos? E atenção, isto não é uma crítica. Adoro a ideia na base do Instagram, e que o próprio nome evoca: a ideia de um telegrama visual. Sou utilizador diário há mais de dez anos e, apesar dos contras (aos quais precisaria de dedicar um post inteiro), continua a ser uma plataforma importante para a minha criatividade. Posto isto, o que resta aos blogs é aquilo que está na génese deste formato de publicação, e continua a motivar a maioria dos que por aqui andam: o desafio criativo e um sentido de realização pessoal pela palavra escrita.

A escrita é das poucas formas de criatividade que não dá para falsificar. Sim, podemos copiar, plagiar, até mesmo contratar um escritor-sombra, mas ninguém se safa com isso a médio e longo prazo, especialmente num blog, em que cada post funciona como certificado de autenticidade do próximo. O estilo da linguagem, a diversidade do vocabulário, até a forma como se separam os parágrafos (sem linhas vazias, por favor) servem como marcadores textuais da autoria. E depois há a autenticidade do que é exposto, que não é tão importante. Mesmo a esse nível, contudo, sei que há boas probabilidades de estar a ler uma experiência em primeira mão quando tropeço numa analogia inesperada, que ilumina um tema ou acontecimento e surpreende pela sua especificidade. Não tem de ser necessariamente um jogo de palavras bem conseguido, basta ser um cruzamento de referências que só podia ter ocorrido àquela pessoa, naquele momento, no encontro entre memória e situação, e que revela uma nova forma de ver algo.

Escrever, para mim, é a forma mais difícil de criar. Segue-se que escrever bem, com originalidade e verve, seja ainda mais árduo de alcançar. Não acredito no nasce-se com isso, mas pela minha experiência como leitor, também não é algo que vejo acontecer por acidente ou mera persistência. É por isso que é tão mais fácil mostrar o que aconteceu com uma fotografia do que contá-lo por escrito. A imagem digital é uma criação automática na qual a nossa intenção serve apenas de gatilho. Tudo o que acontece entre o disparo e o resultado final faz curto-circuito ao pensamento. Escrever é filtrar a existência pela linguagem, com todas as suas limitações e exigências (de tempo, cultura geral e literária, etc).

Parece impossível que não deixemos uma atividade tão exigente do nosso raciocínio e imaginação a quem a tem de praticar profissionalmente numa base diária, como os escritores e os jornalistas. Sinto uma réstia de inveja por quem se propõe a trabalhar para uma agência noticiosa, qual linha de produção de textos, e tem de estar preparado, a todo o momento, a escrever sobre qualquer tema, seja um atentado terrorista de proporções e contornos inéditos ou um fenómeno meteorológico raramente visto. A prática e as convenções jornalísticas ajudam, claro, mas aspiro a essa capacidade para escrever sobre tudo.

A minha curta experiência no jornalismo, todavia, confrontou-me com as minhas limitações como autor. Qualquer que fosse o tipo de artigo (uma curta adaptada da Lusa ou um raro artigo de abertura da secção), gastava sempre largas horas a martelar o Back Space e a recauchutar o texto. Só já muito em cima da hora de fecho é que lá me via forçado a escolher um enquadramento e a correr com ele. Por vezes, ia contra a parede.

Mesmo hoje, depois de mais de mil posts publicados aqui, continuo a debater-me com as mesmas dificuldades. A grande diferença no blog, claro, é que não há hora de fecho (este post, por exemplo, esteve a maturar vários dias nos rascunhos) e, mesmo que escape algum erro flagrante, posso vir aqui editá-lo. O papel não confere esse beneplácito, como descobri no dia da publicação do meu primeiro artigo de abertura de secção no DN (uma oportunidade cara a qualquer estagiário). O orgulho desse dia deu rapidamente lugar ao desengano, quando abri um exemplar do jornal à procura do meu artigo e percebo que repeti a mesma palavra, não duas, mas três vezes (!) na introdução. Lembro-me de ter largado o jornal como se tivesse saído dele um aranhiço e de ter decidido fazer tábua rasa do assunto, esquecendo que o artigo existira — se não podia estar orgulhoso daquele texto, para mim só podia contar como dissabor.

A escrita é a pior das matemáticas, na medida em que recusa fórmulas e ilude qualquer explicação. Não é raro dar por mim a ler duas, três vezes um texto que me chamou a atenção, na ânsia de aceder aos segredos da sua lógica interna. Não é preciso sequer que o tema me interesse especialmente ou que o autor tenha procurado usar um registo diferente do habitual. Basta uma certa cadência, imediatamente reconhecível, para me cativar. Normalmente, são textos que só imagino como tendo sido escritos de rajada, com hesitações mínimas por parte do autor.

É por tudo isto que falar de sucesso num meio baseado na escrita parece-se um bocadinho a falar de sucesso no seio de um clube de xadrez. Existe alguém que se inscreva num campeonato de xadrez pela fama? O desafio do jogo, o estímulo mental do taticismo e a recompensa do xeque-mate valem por si. Da mesma forma, acredito que uma boa parte da motivação para manter um blog esteja ligada à satisfação íntima causada pela escrita ou, para ser mais rigoroso, à satisfação obtida pelo processamento que a escrita faz do pensamento (ou deslumbramento). Há casos em que uma fotografia pode valer por mil palavras, mas há coisas (sensações, memórias, pensamentos) que só a escrita é capaz de fixar e contar.

Desvios

Foi o último livro de biblioteca que trouxe para casa antes do confinamento ser decretado, e parece feito para os dias que correm. Chama-se Lisboa, inclinações, desvios e consiste essencialmente de fragmentos poéticos, escritos e fotografados, inspirados por Lisboa, da autoria de Henrique Dinis da Gama, arquiteto e auto-intitulado amante da cidade.

Dei pela sua capa em destaque há uns anos numa estante da Biblioteca de Belém, e bastou-me folhear algumas páginas para saber que me ia interessar. É uma experiência especial, que invejo a quem faz investigação académica e passa a vida em bibliotecas, esta de encontrar livros sobre os nossos temas preferidos. E ali estava um livro que reúne poesia e fotografia sobre essa musa volúvel e misteriosa que é Lisboa.

Passaram alguns anos desde esse primeiro encontro, até que em dezembro lá o requisitei. Só o abri há uns dias, e ainda bem que o reservei para este tempo de confinamento, porque soube a passeio sem destino pelos telhados da Baixa, pelas escadinhas de Alfama e tantos outros desvios. Lembrou-me o luxo que é passar a perna à rotina e tomar um caminho diferente, na incerteza deliciosa de onde vai desembocar. Um desvio não é só fugir ao caminho mais direto entre A e B. Também pode ser uma forma de passar o tempo e de curto-circuitar o nosso mapa mental da cidade. Já disse que sinto falta de passear por Lisboa?

É uma falta não só dos lugares, mas dos meios. Já estive várias vezes na Baixa da cidade desde março de 2020, mas nunca mais de transportes públicos. O carro tem as suas vantagens, assim como ir à Lua num invólucro metálico com uma reserva de oxigénio para alguns dias. Já fomos à Lua, mas podemos dizer que já passeámos por lá? O carro é uma âncora, que obriga a voltar sempre ao ponto de partida. Todas as distâncias passam a ser medidas em relação ao estacionamento e ao esforço necessário até ao regresso, sem contar que está sempre , a aliciar-nos com a promessa de uma deslocação mais rápida e menos cansativa. Tenho saudades daquelas tardes de sábado sem nada para fazer em que saía de casa sem a mais pequena ideia de onde iria parar. Deixar ao acaso, e ao primeiro autocarro a surgir na paragem, a escolha de uma direção ou zona da cidade para passear sem rumo. O carro nunca me ofereceu essa serendipidade, essa entrega quase total aos caprichos do destino (mesmo que sob o disfarce da oferta de fim-de-semana da Carris).

Isto foi um desvio, certo? Voltando ao livro de Dinis da Gama. Gostei dos seus poemas e do surrealismo que lhes dá corpo. São poemas com geometria à mistura, que abrem vistas novas da cidade.

A segunda metade do livro é dedicada à fotografia e aos detalhes que tornam Lisboa única: os jogos de luz, figuras e texturas do empedrado; a sinuosidade das escadinhas; as ondulações da calçada (levantadas lascivamente pelas raízes das árvores como membros que se movem debaixo de lençóis); os adornos das fachadas e as molduras em pedra das janelas; a árvore, fotografada de cima, que contrasta a exuberância verde da sua folhagem com o quadriculado comprimido do passeio; a pose sedutora de uma árvore, a lembrar um corpo nu de braços no ar; os candeeiros afixados nas esquinas dos prédios que parecem meter a cabeça para fora (sim, precisamos de uma monografia dedicada aos candeeiros lisboetas); a idosa enquadrada pelo postigo da porta, com ar de quem aguarda expectante a passagem do carteiro. Quase todas as fotografias aqui podiam ser o ponto de partida para algo mais.

Ver Lisboa assim fixada nos seus contornos e idiossincrasias é especialmente cativante quando estamos recolhidos em casa na periferia esquecediça da cidade. Dinis da Gama reserva a Lisboa o mesmo olhar apaixonado de um amante pelas pequenas coisas da sua amada. Ela não está toda ali, nunca podia estar, mas os detalhes já são suficientes para descortinar a personalidade e medir o seu poder de sedução. O segredo de beleza de uma cidade só pode ser revelado assim, num poema ou numa fotografia.