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horizonte artificial

ideias e achados.

Interrupção à normalidade

Estava a precisar de começar um livro novo, e virei-me para o Ensaio sobre a Lucidez, de José Saramago, que aguardava na estante há uns anos. Tinha vaga ideia de se tratar de uma espécie de Ensaio sobre a Cegueira virada do avesso, e fiquei surpreendido por perceber que é quase uma sequela, com pontos de ligação à história e personagens do romance anterior.

A ideia de uma cidade inteira a votar em branco tem tanto de estapafúrdio quanto a população de um país a cegar de um dia para o outro, mas conhecendo a obra de Saramago, e o que ele consegue fazer com situações que desafiam a verosimilhança, rendi-me à curiosidade.

Se tivesse que contrastar muito rapidamente a Cegueira e a Lucidez, diria que este romance concentra-se naquilo que o primeiro empurrou para fora do caminho, que é o lado político. A Cegueira é um livro sobre a perda da humanidade numa situação-limite, cuja evolução ultrapassa rapidamente qualquer possibilidade de intervenção política. É nesse ponto que o enredo da Lucidez pára o relógio, a tempo de evitar a desagregação total e de nos deixar ver como é que o poder político reage a um fenómeno novo que não compreende e, portanto, tem tudo para recear.

Uma história sobre as maquinações do poder político tem tudo para me interessar, mas senti problemas logo à partida, com aquela impessoalidade característica que Saramago aplica a algumas situações, por servirem de exemplos de uma realidade maior. Uma espécie de "não vale a pena demorarmos muito nestes personagens, porque são apenas um exemplo em mil". Percebo a utilidade do mecanismo, mas isso fez com que tenha dado por mim sempre a calcular as hipóteses do próximo personagem sem nome ser o nosso protagonista. Foi preciso chegar a meio do livro para ter um vislumbre da direção na qual a narrativa seguiria, e mesmo depois disso, dei por mim a olhar constantemente pelo ombro, como quem duvida das direções recebidas.

Apesar dessas ligeiras frustrações de leitor impaciente, estaquei quando cheguei à parte do muro. Não quero spoilar nada a ninguém, por isso basta dizer que foi nesse ponto que o livro deu uma reviravolta para mim. O que passava por estapafúrdio, passou a parecer, a este leitor do ano 2020, uma descrição desconcertante dos males que afligem atualmente algumas das democracias ocidentais. Está lá tudo: a prepotência, o culto da ignorância e a manipulação pela comunicação em massa. Nada disto é novo, nem sequer a ideia do muro, mas é difícil não ver e sublinhar as semelhanças entre aquilo que Saramago imagina e a real interrupção à normalidade que vivemos.

Feito esse paralelo, o que podemos aprender com a Lucidez de Saramago, e trazer para os nossos tempos de incerteza? Recusar a culpabilização, que serve como forma de distração, e leituras simplistas da realidade, baseadas na noção de que a realidade pode ser aquilo que o poder político quer que seja, são dois pontos de partida.

Desconfinamento

Hoje arrancou a segunda fase de relaxamento das medidas de contenção da COVID-19. Reabriram creches, escolas, restaurantes e mais algumas lojas de média dimensão. Era difícil fazer coincidir este segundo passo no regresso à normalidade com um dia mais solarengo do que o de hoje. Notei isso mesmo logo às 8h, quando fui buscar pão e me espantei com o colorido das mesas e dos guarda-sóis abertos nas ruas. Como uma flor de maio pontual, as esplanadas voltaram.

Tenho dado por mim a tentar fazer sentido de algumas críticas que vou lendo nos blogs e jornais ao "grande confinamento", como já lhe chamam. E a conclusão a que cheguei é esta: há dois campos possíveis, entre os que acham que o Estado fez muito pouco (e/ou muito tarde) e aqueles que dizem, agora, que o Estado se excedeu e fez demasiado (com violações de direitos fundamentais e excesso de medo). Incluo-me firmemente no primeiro grupo. Prefiro pensar que fizemos demasiado pouco, do que aceitar a ideia de que podíamos ter continuado imperturbáveis e indiferentes nas nossas rotinas ao custo real, em vidas humanas, desta pandemia.

Como li algures hoje, vivemos em sociedade, e não numa economia. A noção de que o aparato sanitário, e subsequente impacto económico, pode ter sido insuficiente para evitar todo este sofrimento humano permite, mesmo assim, um módico de consolo pelo esforço coletivo feito (e a possibilidade de repará-lo, com políticas sociais e económicas que apoiem os mais pobres e mais afetados pelo layoff e desemprego). O contrário, não.

Stayin' Alive

Fui, finalmente, ver o Tejo. O azul do rio, o laranja dos cacilheiros seguido do seu rasto branco, o violeta pontual dos jacarandás. Algo parecia, mesmo assim, ausente. Cruzámo-nos com menos pessoas do que seria de esperar, para uma tarde quente de maio, a primeira sem chuva na última semana. Um grupo de amigos escolheu a zona ribeirinha para se juntar, e encontrou uma forma inusitada de manter a distância: alinharam as traseiras dos seus cinco ou seis carros em círculo e sentaram-se, cada um no seu porta-bagagem, a conversar. Na avenida 24 de julho, a surpresa com os canteiros centrais, a transbordarem de vegetação, produzindo um efeito muito bonito (que só a nossa passagem de carro estraga). No Cais do Sodré, virámos à esquerda para subir a rua do Alecrim. O Largo do Chiado parecia pouco movimentado, mas estávamos apenas de passagem, porque voltámos a descer em direção ao rio. Pelo caminho, avistámos um casal a petiscar na rua, a ser servido pela janela do restaurante. Um bocadinho de inveja. Mais à frente, dois miúdos, um dos quais tinha uma semelhança extraordinária com o Cristiano Ronaldo, aproveitavam o fraco movimento nas ruas para treinar manobras de skate. Pouco depois, rumámos a casa. Enquanto fazia o meu exercício de equilibrismo na avenida de Ceuta (manter o ponteiro da velocidade exatamente nos 50km/h), começou a tocar Stayin'Alive na rádio. Esqueci o radar e pus-me a cantarolar.

Maio

Um motivo de entusiasmo

O estado de emergência termina no domingo, mas as autoridades continuam a apelar ao dever cívico de recolhimento durante o mês de maio, pelo que deixo o meu entusiasmo para o que posso fazer por casa: um projeto com fotografias do meu arquivo, que talvez veja a luz do dia.

Uma viagem

Publiquei esta semana, no nosso blog de equipa, a conversa super agradável e interessante que tive, em fevereiro, com a Carolina do Entre Parêntesis. A Carolina refere, a dada altura, como gosta de reler os seus diários de viagem (chama-lhe mesmo uma forma de reviajar) e isso fez-me pensar como devia escrever mais sobre as minhas viagens, para agora poder ter esse prazer (e escape).

Um livro

Nada como uma pandemia para levar um desafio até ao fim: estou prestes a terminar o L'Associé, a tradução francesa do romance de Joseph Conrad, um livro muito pequeno, com apenas 85 páginas, que comecei a ler - embaraça-me confessá-lo - há exatamente um ano... Tenho avançado algumas páginas por dia, desde que estou em confinamento, e o mais difícil parece ter ficado para trás. Estou a cinco páginas do final, e a dar-me ao luxo de empatar um pouco mais a sua leitura, para apreciar a atmosfera dramática de traição pintada por Conrad.

Um post na gaveta

Queria escrever sobre as coisas importantes que estão a acontecer lá fora por estes dias, mas quando a linha da frente desta guerra está tão afastada da nossa vivência quotidiana, parece inevitável questionar a relevância daquilo que temos para contar.

Portugal passou hoje o limiar dos mil mortos, um número impensável para mim há apenas dois meses, que não deixa de ser incompreensível ao dia de hoje. Os números de cada dia parecem protelar não só o regresso à normalidade mas também o início do luto coletivo. Neste momento, o confinamento parece ser uma sala de espera da qual não conseguimos sair, nem mesmo para tomarmos sentido da dimensão da calamidade.

Uma fotografia por fazer

Uma fotografia a qualquer coisa bonita na rua, que não seja um indício da pandemia.

Um sítio

Voltar a ir ver o Tejo, se possível.