Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

horizonte artificial

ideias e achados.

A história de um cravo

A ideia ocorreu-me há uns meses, quando pensava em mais emoticons que pudéssemos disponibilizar no editor de texto dos blogs. Não temos muito espaço para mais sapinhos (é como lhes chamamos na plataforma), pelo que temos tentado encontrar símbolos e gestos que sejam especialmente relevantes para uma comunidade de gente que gosta de escrever e ler.

No último ano, por exemplo, lançámos a pilha de livros , o sinal de visto (quem gosta de listas, vai perceber) , o planeta Terra  e as mãos juntas em sinal de prece ou, como eu o vejo, de gratidão 

Não sei o que desceu em mim, para arriscar a produção de emoticons, mas agarrei a oportunidade quando a vi, de deixar estas pequenas marcas em milhares de páginas na internet. Quando vejo alguém usar o , por exemplo, é impossível não pensar que há ali um bocadinho de mim, da minha (assumidamente pouca) arte e crença no valor da generosidade e da empatia. Um emoticon é uma migalha, claro, na escala de coisas que podemos fazer na vida, mas o que dizer? Apaixonei-me pela noção de dar a um número incontável de gente um atalho para reforçar um sentimento positivo.

Podem imaginar como sorri por dentro quando, ainda em fevereiro, me lembrei do cravo. Eis um emoticon (ainda) em falta nos teclados universais que fazia todo o sentido incluir num editor de texto português. Para além de ser uma flor lindíssima, é um símbolo nascido em Portugal da Liberdade obtida pela resistência pacífica.

Contei até dez, para acalmar, e lá fui eu, de passo apressado (que é o que faço quando tento esconder o entusiasmo com uma ideia) até à secretária do Sérgio, sondá-lo sobre a possibilidade de lançarmos um só sapinho no dia 25 de abril (ainda não antecipara que calharia a um sábado, daí ter sido lançado uns dias antes). Já calculava que seria possível, mas o Sérgio é uma das pessoas mais sérias e competentes que eu conheço - não é alguém cujo tempo eu queira desperdiçar com simbolismos pouco práticos, por mais bem intencionados que pareçam. Para ele achar que é uma boa ideia, então é porque estamos mesmo no bom caminho (de resto, ele também tem a sua quota-parte nisto: a ideia de traduzir o cravo no código [(25)] é sua).

Nesse dia, estava muito longe de pensar que este 25 de abril não poderia descer a avenida e que toneladas de cravos estariam destinadas ao lixo logo após a colheita. Houve cravos verdadeiros para quem quis, e sei que o nosso emoticon não é o mais perfeitinho de sempre, ou a representação gráfica mais original e artística do cravo de abril, mas se havia um 25 de abril em que fazia todo o sentido ter este sapinho, foi hoje - passado em casa, a ouvir os ecos de Grândola, Vila Morena a chegarem de todas as direções em volta, como se estivesse no ar a chegada de um tempo novo. E acredito que esteja.

Uma ideia feliz é isto, o mundo dá uma cambalhota, e damos por nós a distribuir cravos. Aconteceu primeiro à Celeste Caeiro e, agora, a uma escala virtual muito mais pequenina, a nós.

Ainda há tempo para fevereiro?

O que ficou esquecido em março? A pergunta surgiu-me ao pensar nos planos cancelados ou adiados, nas bagatelas que ficaram ainda mais insignificantes, nos pequenos nadas (como a bica ao balcão) que ficaram por fazer. Uma autora aqui do bairro encontrou a duração certa de março: parece ter sido um mês com os 366 dias do ano dentro.

Uma resposta possível à pergunta: fevereiro parece ter ficado esquecido. Apercebi-me disso há uns dias, ao editar as fotografias que ainda esperavam no cartão de memória da câmara. É daí que veio a ideia de fazer um post com algumas fotografias de fevereiro.

A primeira fotografia é de uma pequena encosta de Monsanto, pintalgada de violeta (Vinca major, uma planta que me farto de ver por todo o lado há anos e que só agora fui pesquisar) e amarelo (acho que se tratam de trevos-azedos, Oxalis pes-caprae, mas não tenho a certeza, porque ficaram todas desfocadas ).

pedron18-8647.jpg

Ainda não consegui identificar esta árvore, já nem me recordo bem onde a vi em Monsanto, mas tudo nela parece dizer Primavera.

Atualização 02/05/20: Parece ser um abrunheiro (Prunus insititia L.).

pedron18-8759.jpg

A verdadeira planta-mistério, todavia, é esta. Apareceu em força, no início do mês, à beira de praticamente todos os caminhos que percorri em Monsanto. Foi realmente espantoso ver como, numa questão de dias, tomou conta de todos os espaços não ocupados por árvores ou árbustos, lançando no ar um odor ligeiramente azedo. Tirei-lhe fotografias de todos os ângulos possíveis, mas continua a iludir uma identificação precisa (só sei dizer que parece ser da família das apiaceae).

pedron18-8772.jpg

Sou só eu a achar que a estrelícia não é uma flor fácil de fotografar? Como uma figura de origami, se não for vista do ângulo certo, pode parecer treze coisas diferentes: um punho delicado no ar, uma jóia, um fruto exótico. Não há problema algum nisso, pelo contrário, mas sinto que escapa sempre ao meu olhar. A que olhos pretende agradar com tal exuberância? Ou que predadores precisa de enganar?

Encontrei esta grande concentração de estrelícias à entrada da Estufa Fria de Lisboa, num domingo em que passámos lá de visita. Vistas assim, com os primeiros raios de sol do dia a incidirem nas suas pétalas amarelas, parecem um bando de aves exóticas a conviverem em terra. Talvez venha daí o seu outro nome, ave do paraíso?

pedron18-8900.jpg

Por fim, uma fotografia que, aos meus olhos de abril, me pareceu extraordinária ao sair da memória da câmara. Em primeiro plano, um grupo de pessoas sentadas na relva a desenharem uma das estátuas do jardim Gulbenkian (que foi o que atraiu a minha curiosidade no momento). Lá atrás, outras aproveitam os derradeiros raios de sol da tarde, com destaque para a leitora de chapéu branco. Apetece perguntar quem são estas pessoas, que desenham, lêem e conversam ao ar livre, totalmente abstraídas da presença umas das outras. Parece, sem mérito próprio, o famoso quadro de Georges Seurat. Parece outra era. Foi só há um mês.

Os aviões

Até ao passado domingo, fui o único cá de casa a pôr os pés na rua durante duas semanas, para fazer compras ou ir correr. Pelo caminho, tento prestar atenção a tudo e todos os sinais que denunciam os tempos que estamos a viver. É por isso que fui apanhado de surpresa por uma observação que devia ter sido eu a fazer: há já vários dias (semanas?) que não se ouvem aviões nesta parte de Lisboa.

Na semana passada, o estado de emergência foi renovado. Já se fala da fase seguinte, do "mundo que aí vem", como li algures. Tenho pensando de vez em quando nos negócios locais que frequento (livrarias, pastelarias, restaurantes, etc), e nas hipóteses de cada um deles sobreviver a este encerramento forçado. Em alguns casos, depois da pressão do turismo e da especulação imobiliária, a pandemia pode vir a ser o golpe final.

Quanto a mim, já tive mais certezas de não vir a ser diretamente afetado por tudo isto. Por agora, todavia, é mais importante pensar em como reforçar as rotinas e continuar a motivar quem conta comigo no dia-a-dia.

Desisti, entretanto, de publicar estes posts em diferido. À medida que o tempo passa, dou pela minha atenção a deslocar-se gradualmente da pandemia para as chatices, distrações e obsessões de antigamente. É o maior sinal, para mim, de que os dias começam, enfim, a parecer-se mais uns aos outros.

O grande incêndio

Sexta-feira, 27 de março

76 mortes em Portugal desde o início da epidemia. A cada dia que passa há mais relatos aflitivos de lares de terceira idade em situações de contágio explosivo. Num certo sentido, o país parece estar novamente a arder.

Lá fora, as notícias são igualmente desanimadoras. Em alguns países da Europa, a catástrofe parece não ter fim, com centenas de mortes por dia. Nos EUA, a incompetência da administração atual, aliada a um sistema de saúde magríssimo e sem capacidade de resposta, faz-me recear pelo que pode vir a acontecer por lá. O país mais rico do mundo parece ser, inexplicavelmente, o menos preparado para esta crise.

No Brasil, o seu presidente incendiário está determinado a contrariar tudo e todos e a manter o país a funcionar, custe as vidas que custar. Já (quase) todos sabíamos o que podíamos esperar dele, mas esta indiferença zombeteira pela vida de milhões é de uma vileza criminosa. Infelizmente, o mundo está demasiado ocupado para reparar e repudiá-lo como merece, antes do mal estar feito.

Fui procurar distração de tudo isto na fotografia. Já é hábito antigo meu, pesquisar no flickr ou instagram por fotografias tiradas em Lisboa (e outros sítios que gosto de rever). A maioria das fotografias que encontrei hoje por lá são de passeios ou férias passadas na cidade antes da epidemia, mas foi um escape bem-vindo.

Há um ano, interessei-me pelo livro "O grande incêndio do Chiado", com fotografias de Rui Ochôa, José Carlos Pratas, Fernando Ricardo e Alfredo Cunha, para tentar perceber como os fotojornalistas da altura registaram um acontecimento com aquela magnitude no coração da cidade de Lisboa. A conclusão é que ninguém consegue registar tudo, e que todos temos de aproveitar ao máximo as circunstâncias em que o imprevisível nos encontra. É por isso que o livro juntou as perspetivas de vários repórteres, não só do incêndio em si, mas também dos trabalhos de rescaldo.

Um bom exemplo atual de como o fotojornalismo português está a responder à pandemia é o everydaycovid, um coletivo de repórteres que se juntou no instagram para partilhar algum do seu trabalho sobre o tema (haverá outros de momento? já não me recordo, sequer, do que abria os noticiários no final de fevereiro). Têm documentado ruas e estradas vazias, claro, mas também algumas das maneiras como a sociedade civil se tem mobilizado para proteger os grupos de maior risco e apoiar o trabalho dos profissionais de saúde.

É por saber que há gente empenhada em fazer a diferença lá fora que, mesmo sem ser fotojornalista, sinto o chamamento desta situação, e uma grande vontade de ir para a rua documentar o que está a acontecer e a ser feito. Também pode ser aquela frustração, que provavelmente muita gente já sentiu, em maior ou menor grau, nas últimas semanas, de sermos espetadores caseiros de tudo isto, sem um papel mais ativo para desempenhar. Seja como for, o estado de emergência, aliado às minhas circunstâncias pessoais, não me permite ir mais longe do que o fundo da rua. À falta de alternativa, aproveito as corridas ocasionais e as idas às compras para registar o que vou vendo com o telemóvel. É só o meu bairro, mas sei que reflete o que está acontecer por muitos outros bairros do país (e mundo).

A imagem do dia: o Papa Francisco, sozinho, a orar na Praça de São Pedro, no Vaticano. Um espaço feito para receber centenas de milhares de pessoas parece ganhar ainda mais monumentalidade quando visto assim, vazio à exceção de um só homem.

Março

Quinta-feira, 26 de março

Foi um dia bom, com uma breve saída à rua para compras. A previsão meteorológica para os próximos dias é de tempo nublado, o que vem aliviar a minha disposição. É difícil de acreditar que já estamos a chegar ao final de março. E que termina de forma tão diferente daquela como começou.

Adorava conseguir listar aqui todas as coisas incríveis que me comoveram ou fizeram rir ao longo das últimas semanas. E fazer com elas uma caixa das bad things para voltar a usar em caso de emergência. Sei que vou começar, não tarda nada, a esquecer algumas dessas coisas, mas, para já, sobre estas últimas semanas, basta dizer que não foi tudo bom, não foi tudo mau.

Abril

Um motivo de entusiasmo

Voltar a sair à rua sem motivo. Tenho esperança que volte a ser possível ainda este mês.

Um livro

O Guia do Parque Florestal de Monsanto, editado pela CML há uns anos, para não me ficar pela superfície das coisas que vou observando e fotografando por lá. Foi o último livro que ainda fui a tempo de requisitar nas bibliotecas de Lisboa, antes da Câmara decretar o seu encerramento (aliás, estava a ser atendido quando a notícia chegou).  

Aprender

Sinto que devia estar a fazer algo mais com todo este tempo por casa. Nem que fosse pão.

Teatro

Esperamos por meses melhores.

Um post na gaveta

Publiquei mais posts no último mês do que em alguns anos de existência deste blog, mas vamos a isto: gostava de escrever sobre uma das últimas exposições que consegui visitar antes do mundo parar.

Uma ideia para riscar ou esquecer

Desafiar um amigo para um projeto qualquer de fotografia.

Uma fotografia por fazer

A cidade esvaziada de gente e movimento. Para a fazer, precisava de sair à rua, sem motivo, e não estou muito virado para aí.

Um filme

Agora que já todos sabemos qual é a sensação de ficar retidos por duas semanas em casa, estou com vontade de rever o Janela Indiscreta.

Um sítio

Se eu pudesse sair agora de casa, sem ter de recear dar explicações a alguém, ou de enfrentar os meus próprios receios, fazia-me à estrada em direção ao Alentejo. Assim mesmo, sem destino certo.

Privilégio

Quarta-feira, 25 de março

É um detalhe patético, para me estar a concentrar nele aqui, mas sou obsessivo com correções: os bancos da minha rua foram mesmo removidos pela junta de freguesia. 

Fui correr até Monsanto. Depois de tantos dias sem caminhar (a minha média diária desde janeiro é de 8km) ou subir escadas, o meu joelho direito acusou o esforço e tive de acalmar o ritmo. Pelo caminho, deu para respirar fundo e tirar algumas fotografias com o telemóvel.

No instagram, uma frase que resume as nossas circunstâncias: "a quarentena é privilégio".

No whatsapp, a imagem do (meu) dia: a selfie de uma amiga médica, quase irreconhecível de viseira e máscara de proteção, antes de entrar ao serviço num hospital da zona de Lisboa.

Os dados oficiais em Portugal dão conta, até ao dia de hoje, de 2995 pessoas infetadas e 43 mortes. Como acontece por toda a Europa, os lares da terceira idade parecem ser os locais mais vulneráveis à disseminação do vírus.