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horizonte artificial

ideias e achados.

Primavera domiciliária

Terça-feira, 24 de março

Afinal, os bancos no fundo da rua foram removidos por causa de uma grua.

Continuo a achar (ou a desejar) que vamos regressar à normalidade mais cedo do que tarde, mas os números ainda não o parecem confirmar.

Uma nova expressão que o meu ouvido apanhou hoje (nos blogs? no twitter? são demasiados textos para me lembrar agora): "Primavera domiciliária".

Comecei a publicar este diário no blog, sem saber ainda quando termina.

Os bancos da rua

Segunda-feira, 23 de março

Itália começa a registar percentagens mais pequenas de novos casos. O pesadelo italiano pode estar, precisa de estar, prestes a acabar.

Na frente local, alguns bancos de rua no nosso bairro foram hoje removidos, para desincentivar (pequenos) ajuntamentos. Em tempos normais, tal ação seria considerada um ato de prepotência. Agora, é só mais uma a entrar para a lista de coisas que este vírus nos tirou. Não acredito, todavia, que seja possível manter o país em recolhimento domiciliário para lá de meados de abril. Basta caminhar um pouco, nem que seja até ao ecoponto (já que a recolha do lixo diferenciado foi suspensa), e ver os passeios e as estradas desertas, iluminadas pelo sol da tarde, para sentir o apelo da rua. Chegando a níveis mais baixos de infeção, acredito que esse apelo se torne, para muitos, irresístivel.

Uma boa notícia na frente familiar: passámos todos a estar em teletrabalho. Menos um motivo de angústia.

A onda gigante de humor

Domingo, 22 de março

O cansaço acumulado da semana, a má vizinhança e uma nuvem cinzenta por cima da minha cabeça fizeram deste o pior dos últimos dias.

As salas de Whatsapp não param de se acender com piadas e vídeos para rir. A onda de humor gerada por esta crise é uma onda gigante da Nazaré. Entro na onda, e gabo a criatividade que lhe dá origem, mas não quero ser engolido por ela.

Hoje, em que uma saída teria ajudado a minha disposição, sinto o "fecho" da rua como um golpe pessoal à minha liberdade.

Um poema acabado de fazer

Sábado, 21 de março

Não acredito que o risco seja elevado, nem vou abdicar por inteiro da corrida, mas não consegui convocar a vontade para ir correr esta manhã, como é hábito. Há uma semana, um dos meus receios era ver-me privado da liberdade para ir à rua descontrair ou correr. O que está a acontecer é mais gradual e insidioso: estou a perder a vontade e o gosto de sair à rua sem motivo.

O achado do dia, neste dia mundial da poesia, é um poema acabado de fazer: LISBOA AINDA (novamente, duas palavras em maiúsculas), de Manuel Alegre. Fez-me pensar como é raro e bonito, ler um poema com a data de ontem. Lisboa resiste, sem dúvida.

Primavera

Sexta-feira, 20 de março

Levantei-me da cama ao som da chuva. Quis olhar pela janela para acreditar e respirar de alívio. Sei que muita gente não irá sentir o mesmo, mas só posso falar por mim: não suportava mais um dia passado em casa com sol lá fora.

É o início da Primavera e, sinto cá dentro, do fim da angústia e incerteza que esta semana trouxe. Os primeiros sinais disso estavam no comércio local: não precisámos de fazer fila na frutaria e no talho ao fundo da rua. E já havia frango do campo.

Uma das maiores causas da minha ansiedade nos últimos dias era, precisamente, a situação das compras, e a difícil gestão da necessidade versus risco. Não quero mais passar por uma situação como a de terça-feira, no mercado da freguesia.

Na volta a casa das compras, deparo-me com uma mensagem inesperada de encorajamento a fazer a curva. No letreiro de um autocarro da TST, a alternar com o número da carreira, duas enormes palavras a laranja: FORÇA PORTUGAL. Detive-me, surpreendido pelo impacto de duas palavras em maiúsculas num letreiro eletrónico. Como alguém que acredita no poder dos pequenos gestos, e naqueles que encontram o seu destinatário numa hora e local incertos, era impossível ficar indiferente. A serendipidade é isto: duas palavras lançadas ao ar que aterram aos nossos pés.

Acabei por partilhar o relato do momento no twitter e, entre alguns retweets e favoritos (para a minha média, que costuma ser zero ou nenhuns, chegou a intimidar), alguém fez a piada inevitável: "O Euro foi adiado pá!". Ri-me, claro.

No final do dia, o balde de água fria: as atualizações dos números de infetados e mortos em Itália, Espanha e França. A sensação de otimismo de que a normalidade pode estar ao virar da esquina esvaiu-se ali mesmo. O receio pelos nossos volta a agitar-se e leva a questionar novamente a prudência de cada gesto e saída à rua.

O medo também arde sem se ver

Quinta-feira, 19 de março

Tenho prestado atenção às palavras e frases que têm surgido para descrever os tempos extraordinários que estamos a viver. Hoje, no Público, uma frase memorável sobre os últimos dias: "a semana em que a Terra parou". Ontem, outra expressão, que já não sei atribuir ao autor, emprestada da economia, para descrever as sequelas sociais e psicológicas que esta crise pode causar: "recessão social".

Ainda é difícil acreditar na rapidez com que vizinhos e gente que se conhece de vista há anos no mesmo bairro se passou subitamente a olhar com suspeita e distância. O medo também arde sem se ver, e este parece ter consumido, do dia para a noite, cidades inteiras.

Mesmo hoje, apenas dias depois de tudo isto começar, chego a duvidar que alguém consiga dizer como é que começámos todos, de um momento para o outro, a guardar 1-2 metros de distância uns dos outros na rua. De resto, a ideia de "distanciamento social" é impressionante para um anacoreta como eu. Não sou de grandes afetos físicos, e passo bem sem ter alguém "colado" a mim numa fila, mas acho esta nova distância inquietante. Foi preciso uma pandemia global para perceber como era, afinal de contas, um adepto da proximidade social.

Esta noite, nas notícias, vi imagens das enormes filas de espera que se formaram à porta dos supermercados britânicos, agora que o Reino Unido também começou a fechar. O denominador comum que permite diferenciar as imagens desta crise de outras anteriores? Aquele espaço inesperadamente exato (como se tivesse sido marcado com fita métrica) entre cada pessoa na fila.

Estado de emergência

Quarta-feira, 18 de março

Foram a primeira coisa que vi esta manhã ao subir os estores da janela. As folhas A4 afixadas nas portas de todos os prédios da rua, a informarem os moradores de idade mais avançada para os serviços de assistência domiciliária da junta de freguesia. É bom ver que a junta está a mobilizar-se para ajudar os mais vulneráveis, mas é mais um sinal, a juntar-se a tantos outros, de que a normalidade foi suspensa. Todos os dias parece haver uma nova folha afixada ou um comunicado, a informar de mais uma alteração ao quotidiano. Numa sociedade tecnológica como a nossa, até isso - voltar a ter de prestar atenção a folhas ou cartazes, por vezes escritos à mão, afixados nas principais esquinas do bairro -, parece um chocante retrocesso.

Mais tarde no dia, o meu primeiro e maior erro desde que estou recolhido em casa. Assustado pelos prazos estimados de entrega das encomendas feitas pela internet, e frustrado por não me ter precavido melhor para uma situação de grande afluência aos supermercados, fui procurar, irracionalmente, conforto material a um grande hipermercado da cidade, onde centenas de pessoas já esperavam a sua vez para entrar.

Apesar de estarmos há já várias semanas a aguardar a chegada da COVID-19 a Portugal, devido à evolução geográfica da pandemia, ninguém parece ter antecipado a forma como a crise se precipitou no final da semana passada. Numa questão de dias, o país parou e foi mandado para casa. Mesmo assim, se tivesse que destacar uma medida que nos parece ter apanhado a todos especialmente desprevenidos, teria de isolar o limite definido pelas autoridades à lotação dos espaços comerciais (cuja possibilidade nunca me tinha ocorrido antes). A sua adoção foi imediata, e o seu efeito também, com a formação, em alguns hipermercados, de grandes filas para entrar.

Foi isso que pude constatar hoje ao vivo. Uma hora depois de chegar, o alívio de estar prestes a começar as minhas compras dá imediatamente lugar àquela sensação que toda a gente que já foi vítima de um programa de apanhados deve conhecer: mal entro, tropeço imediatamente na fila para pagamento, que já atravessava metade do hipermercado. Do alívio, passei ao choque divertido e nervoso de quem se apercebe da burrice que acabou de fazer.

Passei vinte minutos às voltas pelos corredores num autêntico nevoeiro mental sobre o que devia levar, sempre a sentir a urgência de integrar a fila cada vez maior para pagamento. À hora que esperei para entrar, somei mais uma hora na fila para pagar. O que trouxe comigo? Nada que justificasse, nem de longe nem de perto, o risco inerente, no contexto da epidemia em curso, a partilhar um espaço fechado com centenas de pessoas.

Não deu, mesmo assim, para deixar de reparar nos funcionários que ali estavam, a  atenderem todos aqueles clientes, apesar da ameaça invisível que parece pairar sobre as nossas cabeças. Senti vergonha por ali estar, sem grande necessidade, e respeito por quem, pela natureza do seu trabalho, não teve essa escolha. À saída, o funcionário que me atendeu na caixa respondeu ao meu desejo de um bom resto de dia com um genuíno, e desconcertante, "bom resto de semana". A mesma semana que ainda não vai a meio e já nos parece ser a mais louca das nossas vidas.

No final do dia, a declaração do estado de emergência em Portugal pelo Presidente da República. A ideia não me agradava, por sentir que nos ia assustar ainda mais e dificultar o novo, e frágil, quotidiano. A garantia de que não irá, para já, implicar um recolher obrigatório, sem compreensão, por exemplo, pelas deslocações de apoio a familiares, chegou para me tranquilizar. Pareceu-me um discurso direto e claro, que pode ficar para a história deste Presidente, não tanto pela inédita declaração de emergência, mas pela gravidade que pretendeu transmitir. Marcelo Rebelo de Sousa nunca se mostrou ao país tão sério quanto esta noite. Pela primeira vez, não se tratou de consolar o país no seguimento de uma tragédia nacional, mas de nos preparar para a possibilidade de uma vir a ocorrer.

Realidades trocadas

Terça-feira, 17 de março

Como muita gente, senti a necessidade de colocar por escrito as pequenas e grandes maneiras como o nosso quotidiano foi abalado na última semana pela pandemia da Covid-19. Optei por publicar estes posts em diferido, cada um com uma semana de atraso, para minimizar o risco da minha própria (e assumida) ansiedade poder contribuir para a de outrem.

Depois de cinco dias a trabalhar a partir de casa, com saídas pontuais para apoiar as deslocações de outro membro da família, chega a hora de enfrentar a nova realidade.

Bem cedo de manhã, saímos de casa pela primeira vez para ir às compras no mercado da nossa freguesia. À entrada, sinais pintados na calçada indicam a distância de segurança a manter de quem espera à nossa frente na fila, à semelhança das marcas de segurança que vemos na auto-estrada. É uma boa ideia, só que a novidade da situação apanha as vinte ou trinta pessoas já presentes desprevenidas. Ninguém se tinha apercebido dos sinais antes da fila começar a serpentear aleatoriamente pelo passeio fora.

Minutos antes do mercado abrir, funcionários da junta chamam a atenção para a necessidade de seguir o percurso marcado na calçada e a fila deixa de existir, assim como a distância de segurança. Na confusão, perdemos o nosso lugar e somos assediados por um indivíduo, chegado depois de nós, que tenta furar alguns lugares na fila e sugere, em tom provocatório, que estamos a tentar fazer-lhe o mesmo. Tentamos ignorá-lo e deixamo-nos estar no nosso não-lugar, nem dentro nem fora da fila, à espera que todos voltem a encontrar o seu. Sinto a tensão do confronto e uma sensação nova, assustadora, de insegurança.

Minutos depois, chegados à entrada da praça, um funcionário de máscara, vestido num fato de proteção dos pés à cabeça, pede-nos para aguardar, enquanto outro esguicha um gel desinfetante nas nossas mãos. Nada preparava, à saída de casa, para uma tentativa de intimidação ou para o aparato sanitário à entrada do mercado, apenas dias depois desta crise se precipitar. A sensação, entre a descrença e o pavor, é a de estar perante um caso de realidades trocadas.

Lá dentro, tudo mais calmo, apenas uma linha desenhada no chão, a limitar a distância que se deve guardar das bancadas com alimentos expostos. Estamos na minoria, dos que não usa máscara (e não tem, em casa, stock suficiente para usar uma nova diariamente), o que parece reforçar a nossa vulnerabilidade.

Menos de 15 minutos depois, abandonamos o mercado com as compras mais essenciais feitas, entramos no carro (habitualmente desnecessário para um percurso tão pequeno) e, sem trocarmos um olhar ou palavra, permitimo-nos respirar fundo. Foi uma experiência que não queremos repetir tão cedo.

Dias extraordinários

Em novembro, a pedido da MJP, escrevia sobre a liberdade e como se conjuga na rua. Nunca pensei, ao escrever essas palavras, que podia dar por mim, e por nós todos, praticamente privados dessa liberdade essencial, apenas alguns meses depois, devido ao esforço coletivo de contenção de uma nova ameaça à saúde pública. Felizmente, é só temporário e a criatividade, aliada à tecnologia, permite-nos continuar ligados e ativos.

À cascata de cancelamentos e encerramentos, durante a semana, seguiu-se o apelo generalizado para ficar em casa, onde estou a trabalhar desde quinta-feira, com as saídas indispensáveis à rua. Os meus únicos contactos sociais passam pela troca de mensagens bem-humoradas com amigos e familiares por todo o país, também em isolamento.

Este sábado, as esplanadas aqui do bairro ainda tinham clientes, a aproveitarem a tarde de sol, mas encontrei um restaurante encerrado, ao qual fiz nota mental de voltar quando tudo isto passar. A sentida justificação que se lê afixada à porta, escrita à mão, resume bem a responsabilidade que o momento exige: "Lamentamos a decisão mas é para bem de todos". O sublinhado não é meu.

A chuva de aplausos que se fez ouvir na minha rua às dez da noite, marcada pela internet em sinal coletivo de apreço pelo trabalho dos profissionais de saúde, foi a única coisa a arrepiar o sossego deste sábado estranho, com ar de feriado em véspera de temporal.

Perguntei à minha mãe, do alto dos seus 76 anos, se tem memória de alguma situação parecida, e a resposta foi perentória: "nada assim". Da minha parte, só consigo encontrar pequenos episódios com vagos ecos emocionais: a breve experiência coletiva do apagão de 2000 em todo o país, o choque generalizado com o 11 de setembro, a tímida apreensão com o esvaziamento do espaço aéreo durante a crise vulcânica na Islândia, etc. De resto, é um momento coletivo sem termo óbvio de comparação. É paz com guerra à doença.

Nas notícias, há relatos de enfermeiros e médicos a voluntariarem-se nos hospitais para assegurar turnos. Nas redes, correm fotografias das notas afixadas nas portas de alguns prédios com os contactos dos vizinhos que se disponibilizam para fazer as compras essenciais por quem pode estar mais vulnerável ao novo coronavírus. Nos blogs, andamos a destacar receitas, livros e todo o tipo de estratégias para afastar o tédio e exercitar a mente. Escrever este post já é uma forma de escape. Estamos isolados, mas parece que nunca estivemos tão unidos e empenhados no bem comum.

A mobilização para ficar em casa e este empenhamento comunitário sem precedentes, aliados ao trabalho dos profissionais de saúde, vai certamente evitar sofrimento e permitir-nos regressar à normalidade mais cedo do que tarde, porventura mais fortes do que antes. Quando isso finalmente acontecer, contem comigo para repetirmos julho de 2016, e corrermos novamente para a rua.

Março

Um motivo de entusiasmo

Uma palavra: Primavera.

Um livro

Terminei o livro do Nuno e a sua viagem a pé pelos Açores despertou a minha curiosidade pelas nove ilhas do arquipélago e a vontade de regressar às caminhadas. Este mês, vou tentar terminar o Viver com alma de José Ricardo Vidal.

Teatro

Fiquei intrigado com este "espetáculo-percurso" no Dona Maria II, intitulado Terra Nullius, que cruza "duas ações simples: caminhar e escrever".

Um post na gaveta

Sinto que estou a perder rapidamente toda a credibilidade com esta rubrica, a prometer posts que depois nunca acabam escritos, mas era bom reunir por escrito alguns pensamentos sobre os meus 13 anos no SAPO Blogs.

Um filme

Tenho este Força Maior para ver.

Um sítio

A sugestão surgiu nos comentários ao post sobre o EVOA, de visitar as Salinas do Samouco, um local de passagem e refúgio, em Alcochete, para uma grande diversidade e quantidade de aves.