Foram a primeira coisa que vi esta manhã ao subir os estores da janela. As folhas A4 afixadas nas portas de todos os prédios da rua, a informarem os moradores de idade mais avançada para os serviços de assistência domiciliária da junta de freguesia. É bom ver que a junta está a mobilizar-se para ajudar os mais vulneráveis, mas é mais um sinal, a juntar-se a tantos outros, de que a normalidade foi suspensa. Todos os dias parece haver uma nova folha afixada ou um comunicado, a informar de mais uma alteração ao quotidiano. Numa sociedade tecnológica como a nossa, até isso - voltar a ter de prestar atenção a folhas ou cartazes, por vezes escritos à mão, afixados nas principais esquinas do bairro -, parece um chocante retrocesso.
Mais tarde no dia, o meu primeiro e maior erro desde que estou recolhido em casa. Assustado pelos prazos estimados de entrega das encomendas feitas pela internet, e frustrado por não me ter precavido melhor para uma situação de grande afluência aos supermercados, fui procurar, irracionalmente, conforto material a um grande hipermercado da cidade, onde centenas de pessoas já esperavam a sua vez para entrar.
Apesar de estarmos há já várias semanas a aguardar a chegada da COVID-19 a Portugal, devido à evolução geográfica da pandemia, ninguém parece ter antecipado a forma como a crise se precipitou no final da semana passada. Numa questão de dias, o país parou e foi mandado para casa. Mesmo assim, se tivesse que destacar uma medida que nos parece ter apanhado a todos especialmente desprevenidos, teria de isolar o limite definido pelas autoridades à lotação dos espaços comerciais (cuja possibilidade nunca me tinha ocorrido antes). A sua adoção foi imediata, e o seu efeito também, com a formação, em alguns hipermercados, de grandes filas para entrar.
Foi isso que pude constatar hoje ao vivo. Uma hora depois de chegar, o alívio de estar prestes a começar as minhas compras dá imediatamente lugar àquela sensação que toda a gente que já foi vítima de um programa de apanhados deve conhecer: mal entro, tropeço imediatamente na fila para pagamento, que já atravessava metade do hipermercado. Do alívio, passei ao choque divertido e nervoso de quem se apercebe da burrice que acabou de fazer.
Passei vinte minutos às voltas pelos corredores num autêntico nevoeiro mental sobre o que devia levar, sempre a sentir a urgência de integrar a fila cada vez maior para pagamento. À hora que esperei para entrar, somei mais uma hora na fila para pagar. O que trouxe comigo? Nada que justificasse, nem de longe nem de perto, o risco inerente, no contexto da epidemia em curso, a partilhar um espaço fechado com centenas de pessoas.
Não deu, mesmo assim, para deixar de reparar nos funcionários que ali estavam, a atenderem todos aqueles clientes, apesar da ameaça invisível que parece pairar sobre as nossas cabeças. Senti vergonha por ali estar, sem grande necessidade, e respeito por quem, pela natureza do seu trabalho, não teve essa escolha. À saída, o funcionário que me atendeu na caixa respondeu ao meu desejo de um bom resto de dia com um genuíno, e desconcertante, "bom resto de semana". A mesma semana que ainda não vai a meio e já nos parece ser a mais louca das nossas vidas.
No final do dia, a declaração do estado de emergência em Portugal pelo Presidente da República. A ideia não me agradava, por sentir que nos ia assustar ainda mais e dificultar o novo, e frágil, quotidiano. A garantia de que não irá, para já, implicar um recolher obrigatório, sem compreensão, por exemplo, pelas deslocações de apoio a familiares, chegou para me tranquilizar. Pareceu-me um discurso direto e claro, que pode ficar para a história deste Presidente, não tanto pela inédita declaração de emergência, mas pela gravidade que pretendeu transmitir. Marcelo Rebelo de Sousa nunca se mostrou ao país tão sério quanto esta noite. Pela primeira vez, não se tratou de consolar o país no seguimento de uma tragédia nacional, mas de nos preparar para a possibilidade de uma vir a ocorrer.