O grande desafio dos últimos dois anos
No início do mês, comprometi-me a escrever aqui sobre o maior desafio a que me propus nos últimos anos. Duvido que alguém reclamasse se não cumprisse, mas aqui fica, mesmo à justa, no último dia do mês.
O problema de estar a escrever este post dois anos depois é que dou por mim a tentar reconstituir a minha própria motivação apenas com o auxílio da minha má memória. Já não sei bem dizer se houve algum acontecimento concreto a precipitar a decisão, mas tenho a certeza sobre o que marcava o meu estado de espírito nessa altura: a perda do meu pai, e a vontade de fazer algo que me permitisse lembrar e seguir as suas pisadas; a necessidade de me desafiar a mim mesmo com algo novo e (aparentemente) difícil; a doença (entretanto ultrapassada) de uma grande amiga, de quem quis ficar mais próximo; por fim, a decisão de tentar tirar a minha mãe da sua pequena bolha doméstica e levá-la comigo a explorar mais o mundo à volta.
Foi assim que dei por mim a colocar, num dia em setembro de 2017, as palavras “Comprei carro” no calendário. Comprei um carro e, sei isso agora, a minha primeira grande crise de ansiedade.
De veterano dos transportes públicos a condutor de domingo
Tirei a carta aos vinte anos e como não precisava de carro para me deslocar até à faculdade, não me lembrei mais do assunto. Nunca gostei da ideia de ter de participar no jogo do trânsito. E é de um jogo que se trata, com regras próprias e espaço para ego e batota. Gerir o trânsito com um bando de desconhecidos, potencialmente irresponsáveis, na estrada, nunca me apelou. A mim, paradoxalmente, sempre me pareceu mais simples e libertador recorrer à relativa previsibilidade dos transportes públicos e caminhar o resto do caminho. Como individualista que reconheço ser, fazia-me confusão (e continua a fazer) ter de vigiar, negociar e competir com os restantes automobilistas.
Vigiar, porque a condução seria canja, se a estrada fosse só nossa. A partir do momento que me sento no lugar do condutor, entro num modo de alerta que esgota a minha atenção. Não consigo praticamente manter uma conversa com ninguém à volta, sobretudo em meio urbano (onde existem mais cruzamentos e mudanças de direção). Não é invulgar ter de voltar a repetir uma conversa tida originalmente enquanto conduzia..
Negociar, porque estamos constantemente a ter de ceder passagem, prioridade ou simplesmente ajudar alguém a sair de uma manobra parva.
Por fim, competir, porque todos queremos chegar rapidamente ao nosso destino, poupando combustível e ego.
Olá, Ansiedade
A decisão foi tão impulsiva, praticamente do dia para a noite que, quando parei para refletir, já tinha encontrado um carro em segunda mão num site de anúncios, ido fazer o test drive com a ajuda de um amigo e comprado o carro no dia a seguir. Não podem ter passado mais de três dias, desde que a ideia de comprar carro me ocorreu, até concretizá-la. E, como é claro, precipitei-me, com custos desnecessários e surpresas chatas ao fim de alguns dias.
O que é que acontece a alguém sem prática de condução que não gosta da ideia de conduzir quando compra um carro em segunda mão por capricho? No meu caso, passa uma semana sem conseguir dormir mais do que algumas horas, oprimido pela sensação de se ter metido num enorme sarilho e recordado disso, literalmente, sempre que põe um pé na rua (e dá de caras com a causa dessa apreensão).
Foi assim que fiquei a conhecer, a sério, a ansiedade.
Os primeiros tempos foram passados a dar voltas ao bairro ou a fazer pequenas deslocações até sítios próximos já muito conhecidos, de modo a recuperar alguma familiaridade com a condução.
Qualquer deslocação a um sítio mais longe, ao qual nunca tivesse ido de carro, todavia, deixava-me insone de véspera. Não ajudava sequer estudar o caminho e começar a antecipar todos os sítios onde perdia prioridade ou seria obrigado a fazer ponto de embraiagem. Só depois de feita a viagem é que a ansiedade afrouxava as suas garras.
Perdi sono, perdi peso, mas eventualmente também perdi o medo. No meu caso, por não precisar do carro no meu dia-a-dia, foi um percurso longo até isso acontecer. Levei vários meses a perder o tremor físico que me afligia sempre que me dirigia ao carro e, depois disso, mais alguns meses até a ansiedade abater e começar a explorar mais caminhos dentro da cidade. Eu sei que parece imenso tempo, mas só ao fim de um ano, por exemplo, é que me senti preparado para atravessar, pela primeira vez, a ponte 25 de abril.
Ou seja, só ao fim de bastante tempo é que comecei a ver o que ganhei em troca: auto-confiança (conquistada ao medo) e autonomia (para explorar mais sítios fora da cidade).
O balanço
Era absolutamente necessário comprar e conduzir um carro para conseguir esta dose de auto-confiança? A resposta é um grande não. Para mim, tratou-se, desde o início, de enfrentar um medo instalado há anos na minha psique.
De resto, o carro é um empecilho para deslocações dentro da cidade (sobretudo na hora de estacionar). Conto pelos dedos das mãos as vezes em que ir de carro compensou mais do que me meter num táxi ou TVDE. Fora da cidade, a logística da viagem é diferente, e o cálculo não é tão simples (depende da nossa companhia, do tipo e duração da viagem), mas desde há coisa de um ano que essa é a principal utilização que dou ao carro.
Além disso, estou muito consciente do custo ambiental de cada deslocação que faço. É por isso que evito ao máximo pequenas deslocações dentro da cidade (menos de 5km) e que praticamente não o uso durante a semana (ou seja, é verdade tudo o que é dito sobre o mau investimento que é comprar um carro, para ficar parado a maior parte do tempo).
Para quem estiver a pensar enfrentar o medo da condução
Antes de mais, dêem-vos tempo para recuperar a familiaridade com o carro (eu meti-me a ler o manual do carro dentro do carro, duas vezes) e ganharem traquejo na condução. A menos que exista um compromisso externo que a isso obrigue (trabalho, família, etc), não é preciso fazer tudo de uma vez. Em duas palavras: pequenos passos.
Peçam a alguém com experiência de condução para vos acompanhar nas primeiras voltas pelo bairro, à noite ou ao fim-de-semana, alturas em que há menos trânsito. Se isso não for possível, as escolas de condução têm pacotes de aulas para encartados poderem praticar a condução com supervisão.
Há sempre uma saída, literalmente. Não é preciso entrar em pânico, se não conseguirem mudar de faixa a tempo da saída que pretendem. Há sempre outra saída mais à frente, outro caminho que é possível fazer. É a minha regra de ouro para tentar evitar a ansiedade com caminhos novos.
Usar de alguma antecipação ou estratégia ajuda a reduzir a ansiedade e melhora qualquer viagem. Evitar alturas e locais de maiores concentrações de pessoas e carros (eu sou o tipo de condutor que é capaz de estacionar a 1km do destino só para evitar a confusão do estacionamento), estudar caminhos alternativos e procurar zonas de estacionamento é algo que ajuda qualquer deslocação, com ou sem ansiedade.
O ponto de embraiagem é mesmo mais fácil e fiável do que parece, mas só se torna segunda natureza com prática, prática e mais prática (a malta que me ouviu, algumas sextas à noite, a praticar numa colina aqui perto de casa sabe do que falo).
Existe realmente alguma malta irresponsável na estrada, mas a minha (limitada) experiência diz-me que a maioria é gente como nós, que leva a condução a sério e só quer chegar ao seu destino sem confusões. Conduzir na estrada só é possível com cooperação entre todos os que nela circulam, e nesse aspeto, já vi mais gente a cooperar (algumas vezes sem buzinadelas, pasme-se) do que a fazer manobras parvas.
Principais lições destes dois anos de condução
Como alguém que vive a fazer listas, mantive, claro, uma lista de erros que fui fazendo ao longo do tempo, que partilho aqui:
- Não mudar de faixa em curvas logo após a convergência de faixas (o ângulo morto é maior).
- Ao estacionar, parar ao invés de hesitar e tentar corrigir em andamento.
- Mesmo com a nossa faixa desimpedida, reduzir a velocidade quando há muitos carros a tentarem entrar ou sair da via em que circulamos.
- Cuidado ao sair de estacionamentos com rodas em cima do lancil.
- Recusar “ajudas” de desconhecidos ao estacionar (a sério, na maior parte das situações, e apesar da boa intenção, só complicam).
- Os sinais de limite de velocidade são vossos amigos: são a maneira encontrada por quem desenhou ou mantém a estrada em que circulam de vos avisar "hey, esta parte não é grande coisa para fazer acima dos 50km/h". Ou seja, não é legalês, são mesmo dicas visuais para vossa segurança. Prestem atenção.
Por fim, não considero que perdi totalmente a ansiedade de conduzir, mas já tive tempo para descobrir o prazer da condução que existe em descolar das tabelas horárias dos transportes, em atravessar estradas vazias ou, simplesmente, ir ver o mar. Não é uma atividade imprescindível na minha vida, sobretudo pelo custo ambiental, mas trouxe algumas coisas boas nos últimos anos, a começar pela ajuda que recebi de amigos e família para agora poder dizer que se trata de um desafio enfrentado e cumprido.